A prescrição de exercício por percentuais fixos do VO₂máx, FCmáx ou potência é prática corrente porque facilita a padronização entre indivíduos. Contudo, trabalhos recentes têm demonstrado que essa abordagem é inadequada para capturar as transições metabólicas reais que determinam as respostas fisiológicas. Em termos práticos: dois atletas podem estar trabalhando a “80% do VO₂máx” e ter respostas metabólicas completamente diferentes — um pode estar abaixo do seu VT₂ (estável), outro acima (acúmulo rápido de lactato).

Por que percentuais universais são apenas uma referência — e por que isso importa
Os percentuais clássicos usados para estimar os limiares ventilatórios — por exemplo, dizer que o primeiro limiar (VT₁) ocorre entre 50 e 65% do VO₂máx, e o segundo limiar (VT₂) entre 75 e 90% do VO₂máx — são apenas valores médios populacionais. Eles servem como um ponto de partida, mas não representam fielmente cada indivíduo.
Na prática, o ponto em que cada pessoa atinge o VT₁ e o VT₂ varia bastante. Essa variação não depende apenas do VO₂máx, mas também de outros fatores como o tipo de fibra muscular predominante, histórico de treino, metabolismo de gorduras e carboidratos, e até genética.
Estudos recentes mostraram que a porcentagem do VO₂máx em que aparecem os limiares (ou seja, %VO₂máxVT₁ e %VO₂máxVT₂) está mais relacionada ao consumo de oxigênio medido exatamente nos limiares (VO₂VT₁ e VO₂VT₂) do que ao VO₂máx em si. Em outras palavras, os limiares refletem mais o funcionamento metabólico e ventilatório individual do que a “capacidade máxima” global.
Quando os pesquisadores analisam o VO₂ nos limiares e no máximo de forma integrada (VO₂VT₁ + VO₂VT₂ + VO₂máx), observam que atletas mais treinados tendem a ter limiares que ocorrem em percentuais mais altos do VO₂máx — ou seja, conseguem sustentar intensidades maiores antes de acumular fadiga. Ainda assim, mesmo dentro de grupos de mesma categoria (como homens ou mulheres treinados), há grande variação individual.
Na prática, isso significa que prescrever o treino com base em percentuais fixos de VO₂máx, frequência cardíaca máxima ou potência máxima pode gerar erros consideráveis.
Para alguns atletas, a intensidade prescrita pode acabar sendo leve demais, sem estímulo suficiente para gerar adaptação. Para outros, pode ser intensa demais, aumentando o risco de fadiga excessiva ou overreaching (sobrecarga sem recuperação adequada).

O que o estudo acrescenta ao debate
Derivamos de tais evidências, alguns fatos:
- %VO₂máxVT₁ e %VO₂máxVT₂ não são constantes — deslocam-se com o perfil fisiológico do atleta.
- Classificar aptidão apenas pelo VO₂máx mascara efeitos submáximos; integrar VO₂VT₁ e VO₂VT₂ dá uma visão mais fiel e permite estratificar atletas de forma mais funcional.
- Mesmo estratificando, existe grande variabilidade individual, o que reforça que a única forma segura de padronizar intensidade é medir limiares individuais, não supor percentuais.
Esses achados concordam com a ideia de que as adaptações ao treinamento são específicas: trabalhos que focam deslocar limiares (especialmente VT₂) produzem ganhos submáximos que nem sempre acompanham proporcionalmente o aumento do VO₂máx.
A solução prática: combinar VO₂ Master + Moxy para identificar VT₁ e VT₂ individualmente
A integração de duas tecnologias — análise ventilatória direta (VO₂ Master) e NIRS muscular portátil (Moxy Monitor) — torna possível, acessível e prática a determinação individual dos limiares:
- VO₂ Master fornece medições diretas: VO₂, ventilação (VE), razões ventilatórias e permite aplicar métodos clássicos (V-slope, equivalentes ventilatórios) para detectar as inflexões ventilatórias que marcam VT₁ e VT₂.
- Moxy Monitor (NIRS) mede continuamente a saturação local de oxigênio (SmO₂) no músculo. Em testes incrementais, padrões típicos incluem:
- VT₁: primeira queda sustentada ou mudança no comportamento da SmO₂ — indicando maior recrutamento e extração de O₂.
- VT₂: queda mais acentuada e progressiva da SmO₂ concomitante à segunda inflexão ventilatória — refletindo aumento da contribuição anaeróbia e extração periférica.
Por que a combinação é superior? o VO₂ Master identifica com precisão as mudanças ventilatórias centrais; o Moxy revela a resposta periférica (extração muscular). Juntos, fornecem uma confirmação cruzada (central + periférica) que aumenta a confiança na identificação dos limiares e permite monitoramento em tempo real, inclusive em sessões de campo ou treinos específicos.

Como isso muda a prescrição e o controle do treino (aplicação prática para treinadores)
Avaliação inicial (laboratório ou campo bem instrumentado):
- Protocolo incremental padronizado (aquecimento, ramp ou estágios), com VO₂ Master e Moxy no vasto lateral (ou outro músculo predominante).
- Determinação de VT₁ e VT₂ por ventilação (V-slope, VE/VO₂ e VE/VCO₂) e validação com o padrão SmO₂ (primeira e segunda quedas).
- Registrar também FC, potência (se ciclismo) e sensação percebida (RPE) para construir zonas de treino práticas.
Definição de zonas individualizadas (exemplo prático):
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- Zona 1 (recuperação): claramente abaixo do VT₁.
- Zona 2 (base / endurance sustentável): em ou ligeiramente abaixo de VT₁ — importante para adaptações mitocondriais e capacidade de sustentar volume alto.
- Zona 3 (intermediário): entre VT₁ e VT₂ — útil para trabalho de capacidade específica.
- Zona 4 (limiar / VT₂): em torno ou ligeiramente acima do VT₂ — eficaz para deslocar o limiar de lactato.
- Zona 5 (Muito intenso): bem acima do VT₂, para ganhos de potência máxima e VO₂máx.
Treinos para deslocar limiares e estruturar periodização:
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- Para aumentar o VT₂ (deslocá-lo em direção ao VO₂máx): sessões intervaladas longas e intensas próximas ao VT₂ (por exemplo, repetições de 3–8 min com recuperação parcial, trabalhando em potência/VO₂ correspondentes ao VT₂ ou ligeiramente acima). O princípio é aplicar estímulo suficiente no domínio “intensidade controlada” para provocar adaptações na capacidade de tamponamento, fibra tipo I/II e metabolismo glicolítico aeróbio.
- Para construir base (Zona 2): volume extenso em intensidade sub-VT₁, que estimula biogênese mitocondrial, capilarização e metabolismo de gorduras — adaptações essenciais para alto rendimento em endurance e para suportar treinos intensos sem fadiga excessiva.
Monitoramento contínuo com Moxy durante a temporada:
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- Usar SmO₂ para verificar se um atleta está realmente em zona desejada durante uma sessão de treino em campo (especialmente útil onde VO₂ não é mensurável).
- Permite detectar fadiga acumulada (quedas SmO₂ mais pronunciadas para mesma intensidade) e ajustar carga em tempo real.

Por que treinar em VT₂ e em Zona 2 são ambos necessários — e complementares
- Treinar em/ao redor do VT₂ é eficiente para elevar o limiar de lactato e aumentar a intensidade submáxima sustentável — deslocando o limiar em direção ao VO₂máx. Isso melhora a capacidade de manter velocidades/potências elevadas por mais tempo.
- Treinar abaixo do VT₁ (Zona 2) promove adaptações estruturais e metabólicas (mitocôndrias, capilares, enzimática oxidativa) que aumentam a resistência à fadiga, melhoram a recuperação e permitem maior volume de treino — essencial para atletas de endurance que seguem modelos de distribuição de intensidade (p.ex., piramidal).
- Conclusão funcional: um programa de alto rendimento combina ambos: base extensa em Zona 2 para capacitar o organismo a tolerar volume e sustentar intensidade, e sessões específicas em/ao redor do VT₂ para deslocar o limiar e melhorar desempenho em competições.
Limitações, cuidados práticos e recomendações técnicas
- Estruturação personalizada do protocolo é crítica: tipo de protocolo incremental, duração dos estágios e aquecimento influenciam a detecção dos limiares.
- Interpretação de NIRS (Moxy) exige cuidados: posição do sensor (habitualmente vasto lateral), espessura de tecido subcutâneo, exposição à luz ambiente e movimento podem influenciar sinais — treinamento técnico para colocação e interpretação é necessário.
- Reavaliação periódica: limiares mudam com o treinamento e a fadiga; reavaliar a cada bloco de treinamento ou quando mudanças de desempenho forem observadas.
Da média à individualização
As porcentagens universais do VO₂máx são um ponto de partida, não uma verdade normativa. Estudos atuais revelam que a posição relativa dos limiares é dependente do perfil submáximo do atleta e que olhar apenas para o VO₂máx pode mascarar mudanças importantes. A boa notícia é que tecnologias como VO₂ Master + Moxy tornam possível identificar VT₁ e VT₂ individuais de forma prática e validada (central + periférica). Para treinadores, isto significa prescrever e controlar intensidade de maneira muito mais precisa, alinhando volume e intensidade às respostas reais de cada atleta — e, com isso, otimizar adaptações, reduzir risco de erro na dosagem e potencializar o rendimento em provas de endurance.
Por outro lado, embora por muito tempo, o limiar de lactato (LT%) tenha sido apontado como um dos principais determinantes da performance aeróbica, estudos com grandes amostras de atletas mostram que essa relação não é tão direta quanto se supunha. Quando o limiar é expresso como percentual do VO₂pico, ele não distingue atletas de elite, nacionais ou regionais. Em outras palavras, corredores, ciclistas e esquiadores com níveis competitivos muito diferentes podem apresentar valores semelhantes de LT%, mesmo que o VO₂pico absoluto varie amplamente entre eles. Isso indica que o LT% não é um bom preditor de desempenho, apesar de refletir o ponto fisiológico em que a produção e a remoção de lactato se equilibram.
Nesse contexto, alguns autores acreditam que o VO₂pico continua sendo o principal preditor de performance quando analisado em conjunto com a economia de movimento. Atletas mais bem-sucedidos não apenas consomem mais oxigênio por minuto — sinal de maior capacidade cardiorrespiratória —, mas também utilizam esse oxigênio de forma mais eficiente. Assim, o desempenho em esportes de resistência parece depender menos da porcentagem do VO₂máx em que o limiar ocorre, e mais da quantidade total de oxigênio que o atleta é capaz de captar e converter em energia útil.
Isso não significa que os limiares deixem de ser importantes. Eles continuam sendo excelentes indicadores do rendimento atual, mostrando como o corpo lida com a carga metabólica em diferentes intensidades. No entanto, as adaptações que de fato ampliam o potencial aeróbico — e que, portanto, diferenciam atletas de elite — decorrem principalmente do aumento do VO₂pico e da melhora na eficiência energética. Na prática, isso reforça o valor de incluir sessões específicas de VO₂máx na periodização do treinamento, mesmo em atletas já treinados. Essas sessões, realizadas em intensidades próximas do consumo máximo de oxigênio, promovem adaptações centrais (como aumento do débito cardíaco e da densidade capilar) que sustentam tanto o VO₂pico quanto o desempenho em intensidades submáximas.
Em síntese, os limiares indicam onde o atleta está, mas o VO₂pico determina até onde ele pode chegar. O treinamento eficaz deve integrar ambos — utilizando os limiares como guias de controle e o VO₂máx como motor fisiológico do progresso.
Referências:
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