1. Introdução
A elevação dos níveis de colesterol LDL e da hemoglobina glicada (HbA1c) é classicamente interpretada, em contextos clínicos, como marcador de risco cardiometabólico. Contudo, em atletas de endurance, tais alterações bioquímicas frequentemente refletem adaptações fisiológicas à escassez energética crônica, e não disfunção metabólica em sentido patológico. Essa discrepância interpretativa decorre do fato de que o paradigma clínico tradicional raramente considera as especificidades metabólicas do atleta de resistência, cujo organismo opera sob estresse energético intenso e sustentado.

Fonte: Buga A, Welton GL, Scott KE, Atwell AD, Haley SJ, Esbenshade NJ, Abraham J, Buxton JD, Ault DL, Raabe AS, et al. The Effects of Carbohydrate versus Fat Restriction on Lipid Profiles in Highly Trained, Recreational Distance Runners: A Randomized, Cross-Over Trial. Nutrients. 2022; 14(6):1135.
A condição conhecida como Deficiência Relativa de Energia no Esporte (REDs — Relative Energy Deficiency in Sport) descreve o estado em que a ingestão energética não é suficiente para sustentar, simultaneamente, as demandas metabólicas básicas e o volume de treinamento. Embora quase sempre exista um conjunto de fatores envolvidos, esse desequilíbrio desencadeia adaptações endócrinas e metabólicas que alteram o perfil lipídico, a regulação da glicose e a função hormonal — produzindo valores laboratoriais frequentemente mal interpretados.

Fonte:https://melbournecbdphysio.com.au/sports-medicine/red-s-silent-saboteur-of-everyday-performance/
Metanálises recentes indicam a magnitude do problema: 44,7% dos atletas apresentam sinais de baixa disponibilidade energética (LEA — Low Energy Availability) e quase 70% deles apresentam risco de desenvolver tal condição. Entre corredores e triatletas, por medo em ganharem peso, promoverem distúrbios intestinais indesejáveis ou por orientações inadequadas, apenas 50% cumprem as orientações de consumo de carboidratos durante as provas longas.
Nesse contexto, compreender REDs exige uma leitura integrada das respostas sistêmicas ao déficit energético: o organismo, em tentativa de autopreservação, redistribui recursos metabólicos entre sistemas prioritários, reduzindo a função reprodutiva, imunológica e até cognitiva para manter a homeostase energética. Assim, o aumento de LDL ou da HbA1c não é um “erro metabólico”, mas parte de um mecanismo adaptativo sistêmico — uma forma de o corpo sinalizar que está operando em modo de economia energética.
- Mecanismos Fisiológicos Relacionados à Elevação do Colesterol LDL
2.1. Adaptação hepática à escassez energética
Quando a ingestão calórica — especialmente de carboidratos — não acompanha o gasto energético imposto pelo treinamento, o fígado adapta-se por meio da aumentada mobilização e síntese de lipídios circulantes. Essa resposta visa garantir a oferta contínua de substratos energéticos (ácidos graxos e lipoproteínas) aos tecidos periféricos, em especial ao músculo esquelético. O resultado é o aumento compensatório das lipoproteínas de baixa densidade (LDL-C) e, em alguns casos, também do colesterol total, sem que isso necessariamente reflita uma condição fisiopatológica. Trata-se de uma “hipercolesterolemia adaptativa”, uma assinatura bioquímica de um metabolismo forçado a operar com combustível insuficiente.

Fonte: Norwitz NG, Feldman D, Soto-Mota A, Kalayjian T, Ludwig DS. Elevated LDL Cholesterol with a Carbohydrate-Restricted Diet: Evidence for a “Lean Mass Hyper-Responder” Phenotype. Curr Dev Nutr. 2021 Nov 30;6(1):nzab144.
De forma complementar, a literatura demonstra que a baixa disponibilidade energética altera a sinalização hormonal envolvendo o eixo GH/IGF-1, reduzindo estímulos anabólicos e promovendo a priorização de vias metabólicas de sobrevivência. Essa reprogramação hormonal favorece o aumento da lipólise e o uso de substratos lipídicos, reforçando o padrão de “hiperlipidemia adaptativa” observado em REDs.
2.2. Alterações hormonais e mobilização lipídica
A baixa disponibilidade energética ativa o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, elevando os níveis de cortisol e catecolaminas. Esses hormônios estimulam a lipólise no tecido adiposo e a liberação de ácidos graxos livres (AGL) na circulação. Hipoteticamente, o excesso de AGL seria então, parcialmente reesterificado no fígado e empacotado em partículas de LDL e VLDL, contribuindo para a elevação do colesterol sérico.
Além disso, estudos recentes mostram que o déficit energético prolongado interfere na função tireoidiana — com redução de T3 e aumento compensatório de rT3 —, o que diminui o gasto metabólico basal e reforça o caráter poupador do metabolismo em REDs. Esses ajustes visam preservar energia, ainda que à custa de menor eficiência metabólica e potencial impacto sobre o desempenho.
2.3. Evidências empíricas
Embora com evidências conflitantes, alguns estudos sugerem que o padrão lipídico alterado em atletas com risco de REDs apresente sinais de baixa disponibilidade energética com níveis de LDL significativamente mais elevados e T3 reduzido, indicando metabolismo poupador. De modo similar, parece existir correlação positiva entre escores altos de LEAF-Q (questionário indicativo de LEA em mulheres) e níveis séricos de LDL em atletas de esportes de composição corporal “magra”. Esses achados corroboram a hipótese de que o aumento de colesterol LDL, em tais casos, reflete adaptação metabólica à restrição energética, e não risco cardiovascular primário.

Fonte: Angelidi AM, Stefanakis K, Chou SH, Valenzuela-Vallejo L, Dipla K, Boutari C, Ntoskas K, Tokmakidis P, Kokkinos A, Goulis DG, Papadaki HA, Mantzoros CS. Relative Energy Deficiency in Sport (REDs): Endocrine Manifestations, Pathophysiology and Treatments. Endocr Rev. 2024 Sep 12;45(5):676-708.
Pedagogicamente, esse fenômeno oferece excelente oportunidade de ensino sobre a importância de interpretar biomarcadores dentro de seu contexto fisiológico. A leitura isolada de parâmetros laboratoriais, sem considerar o balanço energético, pode levar a conclusões diametralmente opostas à realidade biológica do atleta. O educador em ciências do esporte deve, portanto, enfatizar o raciocínio integrativo, mostrando como cada marcador reflete a priorização energética do organismo em um ambiente de escassez.
- Mecanismos Fisiológicos Relacionados à Elevação da Hemoglobina Glicada (HbA1c)
3.1. Resistência à insulina funcional e transitória
Em atletas com LEA, a depleção crônica de glicogênio muscular induz um estado de resistência à insulina funcional — uma resposta adaptativa que visa preservar glicose para tecidos dependentes, como cérebro e hemácias. Essa resistência transitória decorre do aumento de cortisol e catecolaminas e da menor sensibilidade periférica à insulina. Quando o atleta não repõe adequadamente o glicogênio com carboidratos, esse estado persiste, prolongando a elevação da glicose circulante e, por consequência, o valor médio refletido na HbA1c.
Esse mecanismo integra o eixo mais amplo de REDs, em que o organismo modula a utilização de substratos energéticos conforme a prioridade tecidual. A manutenção da glicose para funções vitais, em detrimento da síntese proteica ou reprodutiva, evidencia a natureza hierárquica da economia energética durante o déficit calórico crônico.
3.2. Aumento do turnover lipídico e competição metabólica (Ciclo de Randle)
Com glicogênio reduzido, o músculo passa a oxidar predominantemente gordura. Esse predomínio lipídico inibe a utilização de glicose via mecanismo de Randle, reduzindo a captação muscular de glicose e elevando a glicemia pós-prandial. Assim, o corpo “aprende” a depender de ácidos graxos e poupa glicose, o que pode aumentar discretamente a média glicêmica sem representar patologia.

Fonte: RANDLE PJ, GARLAND PB, HALES CN, NEWSHOLME EA. The glucose fatty-acid cycle. Its role in insulin sensitivity and the metabolic disturbances of diabetes mellitus. Lancet. 1963 Apr 13;1(7285):785-9.
No plano didático, esse é um exemplo paradigmático de como princípios clássicos da bioquímica — como o ciclo de Randle — ganham nova relevância quando aplicados ao contexto do exercício e da baixa disponibilidade energética. Ao ensinar REDs, é possível demonstrar como a integração entre bioquímica, fisiologia e endocrinologia explica fenômenos aparentemente paradoxais, como o aumento da HbA1c em indivíduos metabolicamente saudáveis.
3.3. Estresse oxidativo e vida média eritrocitária
A deficiência energética pode comprometer a eritropoiese e prolongar a vida útil dos eritrócitos, permitindo maior tempo para glicação da hemoglobina. Esse mecanismo, embora ainda teórico, é coerente com observações em estados de subnutrição ou anemia relativa induzida por treino intenso.
3.4. Evidências empíricas
HIROMATSU & GOTO, (2024) demonstraram em triatletas japoneses, correlação positiva entre baixa disponibilidade energética e níveis elevados de glicose intersticial noturna, indicando alteração na homeostase glicêmica em função do déficit calórico. FLOCKHART et al. (2023) reforçam que, em atletas de endurance, as flutuações glicêmicas e a variabilidade da glicose (GV) não seguem o padrão de indivíduos sedentários — sugerindo que HbA1c pode superestimar o risco metabólico nesse grupo.
A integração pedagógica desses achados permite uma compreensão mais ampla do conceito de homeostase energética: o corpo do atleta, em REDs, opera em uma economia de energia que exige priorização e flexibilidade metabólica. O papel do educador é ensinar que tais ajustes não configuram “doença”, mas sim estratégias biológicas de sobrevivência em ambientes de déficit crônico.
- Considerações Clínicas e Implicações Práticas
A interpretação isolada de biomarcadores clássicos — como LDL e HbA1c — em atletas de endurance pode conduzir a erros diagnósticos relevantes. Em vez de indicar doença, tais valores podem representar sinais precoces de desequilíbrio energético e devem ser avaliados à luz do contexto fisiológico, nutricional e de carga de treino.
A abordagem ideal inclui:
- Reavaliação da disponibilidade energética e da periodização nutricional;
- Monitoramento de função tireoidiana, cortisol, T3 e ferritina;
- Aumento controlado da ingestão de carboidratos e energia total;
- Acompanhamento multidisciplinar com nutricionista esportivo, médico e psicólogo.
Além disso, o tratamento de REDs pode incluir estratégias complementares como reposição hormonal em casos de amenorreia prolongada, suplementação de vitamina D e ferro, e suporte psicológico para restaurar padrões alimentares adequados. Tais intervenções, quando associadas à educação sobre periodização nutricional, compõem uma abordagem pedagógica eficaz para prevenir recorrências e promover autonomia do atleta no manejo de sua saúde metabólica.
- Conclusão
A elevação de LDL e HbA1c em atletas de endurance não deve ser interpretada automaticamente como sinal de risco cardiometabólico. Em muitos casos, reflete mecanismos adaptativos de sobrevivência celular diante da escassez energética crônica. Compreender essas nuances é fundamental para evitar diagnósticos equivocados e para preservar o equilíbrio entre performance e saúde de longo prazo. O corpo do atleta não mente: quando subalimentado, ele fala por meio de seus marcadores — cabe ao profissional de saúde saber escutá-lo.
Didaticamente, o estudo de REDs revela um modelo exemplar de integração entre fisiologia, endocrinologia e educação em saúde: compreender o “porquê” de cada marcador abre caminho para uma prática clínica e pedagógica mais precisa, empática e baseada em evidências. Ensinar REDs é, portanto, ensinar o corpo humano a ser compreendido em sua totalidade adaptativa, e não apenas através de números laboratoriais isolados.
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