Biomarcadores no Exercício de Endurance: Confiabilidade, Regulação Individual e Valor Preditivo

por | nov 5, 2025

Os biomarcadores no exercício de endurance representam um campo de investigação em franca expansão, situado na confluência entre a biologia molecular, a fisiologia do exercício e a ciência aplicada ao desempenho humano. A noção de biomarcador — entendida como qualquer substância mensurável em fluidos corporais capaz de refletir processos biológicos, patológicos ou adaptativos — ganha especial relevância quando se busca compreender as respostas agudas e crônicas do organismo ao esforço físico prolongado. No contexto do treinamento de resistência, tais marcadores estabelecem uma ponte entre a fisiologia celular e a prática esportiva, permitindo estimar com maior precisão a carga interna, o estresse metabólico, a magnitude da resposta inflamatória e a eficiência dos processos de recuperação. Todavia, essa promessa científica é acompanhada de desafios significativos: a expressiva variabilidade inter e intraindividual, as interferências ambientais, as flutuações hormonais, as diferenças genéticas e a heterogeneidade metodológica das análises laboratoriais ainda limitam a robustez interpretativa dos achados. A construção de um painel de biomarcadores verdadeiramente confiável, reprodutível e sensível às variações de carga constitui, portanto, um dos maiores objetivos contemporâneos da fisiologia do esporte.

Fonte: Haller N, Behringer M, Reichel T, Wahl P, Simon P, Krüger K, Zimmer P, Stöggl T. Blood-Based Biomarkers for Managing Workload in Athletes: Considerations and Recommendations for Evidence-Based Use of Established Biomarkers. Sports Med. 2023 Jul;53(7):1315-1333.

Investigações recentes têm buscado precisamente delinear os parâmetros que apresentam maior consistência na mensuração das respostas fisiológicas ao exercício. Estudos de test–retest, realizados com indivíduos submetidos a sessões padronizadas de corrida de longa duração, demonstraram que a confiabilidade de um biomarcador não depende apenas de sua relevância fisiológica, mas também da estabilidade de sua resposta diante de repetições experimentais controladas. Entre os indicadores hematológicos de maior reprodutibilidade destacam-se o volume corpuscular médio (MCV), a hemoglobina (HGB), as plaquetas (PLT), os eritrócitos (RBC) e o hematócrito (HCT), todos com coeficientes de correlação intraclasse superiores a 0,9. No domínio funcional, a força voluntária máxima (MVC), tanto em extensores quanto em flexores de joelho, apresentou igualmente excelente consistência entre medidas. No campo bioquímico, as substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico (TBARS), a lactato desidrogenase (LDH) e a interleucina-1 receptor antagonista (IL-1RA) mostraram boa confiabilidade e sensibilidade à carga de exercício, refletindo processos de estresse oxidativo e inflamação controlada. Já a creatina quinase (CK), embora amplamente utilizada como indicador de dano muscular, demonstrou confiabilidade apenas moderada, provavelmente devido à enorme variabilidade individual e à influência de fatores genéticos na permeabilidade da membrana sarcolemal. Esses achados reforçam a noção de que o monitoramento eficaz da carga e da recuperação requer um painel multidimensional, que integre marcadores objetivos — de natureza hematológica, bioquímica e neuromuscular — com medidas subjetivas, como o estado de humor e a percepção de esforço, avaliados por instrumentos psicométricos como o MDMQ (Multidimensional Mood State Questionnaire).

Fonte: Haller N, Behringer M, Reichel T, Wahl P, Simon P, Krüger K, Zimmer P, Stöggl T. Blood-Based Biomarkers for Managing Workload in Athletes: Considerations and Recommendations for Evidence-Based Use of Established Biomarkers. Sports Med. 2023 Jul;53(7):1315-1333.

 Avanços metodológicos mais recentes incorporaram a modelagem estatística e o aprendizado de máquina à análise das respostas fisiológicas, ampliando substancialmente a compreensão da regulação individual dos biomarcadores. Ao aplicar algoritmos de clusterização e índices de estabilidade como o Group Assignment Quality (GAQ), pesquisadores foram capazes de identificar padrões de resposta específicos de cada indivíduo, revelando que a regulação fisiológica frente ao exercício não é aleatória, mas um traço característico e relativamente estável ao longo do tempo. Citocinas como IL-10, IL-6 e IL-8, bem como a própria CK, exibiram alta estabilidade individual (GAQ > 0,8), sugerindo que determinados perfis inflamatórios e metabólicos são intrínsecos à biologia de cada atleta. Entre os marcadores de maior valor preditivo, o cortisol e a IL-8 destacaram-se por sua capacidade de antecipar o comportamento de outros indicadores fisiológicos e por se correlacionarem com a recuperação de força e a percepção subjetiva de fadiga. Ademais, observou-se que o nível basal de cada biomarcador desempenha papel determinante na previsão de sua cinética pós-esforço: compreender o “ponto de partida” fisiológico é condição indispensável para interpretar adequadamente a magnitude e a direção das respostas adaptativas. Esse conjunto de evidências consolida uma transição epistemológica na fisiologia do exercício, deslocando o foco de médias populacionais para uma abordagem de caráter individualizado e preditivo, que valoriza a singularidade biológica como elemento central da interpretação.

Fonte: Małkowska, P., & Sawczuk, M. (2023). Cytokines as Biomarkers for Evaluating Physical Exercise in Trained and Non-Trained Individuals: A Narrative Review. International Journal of Molecular Sciences, 24(13), 11156.

A análise fisiológica dos principais biomarcadores permite uma leitura integrada dos múltiplos sistemas envolvidos na adaptação ao exercício. Os marcadores de dano muscular, como CK e LDH, refletem a integridade das membranas e o grau de estresse mecânico imposto às fibras, enquanto o TBARS expressa o impacto do estresse oxidativo sobre os lipídios, correlacionando-se com a perda de força e a fadiga muscular. As citocinas inflamatórias, por sua vez, compõem um eixo complexo de sinalização: a IL-6, produzida pelo músculo esquelético em resposta ao esforço, atua tanto como mediadora inflamatória quanto como mioquina de ajuste metabólico; já a IL-1RA e a IL-10 exercem funções anti-inflamatórias, essenciais à resolução do processo inflamatório e à restauração da homeostase. A proteína C reativa (CRP), embora menos específica, fornece um indicativo tardio do estado inflamatório sistêmico. No domínio endócrino, o cortisol desponta como marcador sensível de estresse físico e psicológico, cuja interpretação se enriquece quando articulada com indicadores subjetivos, como a percepção de esforço e as variações de humor. Em conjunto, esses elementos formam uma matriz psicobiológica integrada, na qual a dimensão emocional e cognitiva é reconhecida como componente fisiológica legítima do processo adaptativo.

Fonte: Małkowska, P., & Sawczuk, M. (2023). Cytokines as Biomarkers for Evaluating Physical Exercise in Trained and Non-Trained Individuals: A Narrative Review. International Journal of Molecular Sciences, 24(13), 11156.

Do ponto de vista prático e científico, esses achados sustentam um paradigma de monitoramento integrativo e dinâmico da carga de treinamento. O atleta deve ser compreendido como um sistema aberto e adaptativo, no qual múltiplos subsistemas — metabólicos, imunológicos, neuromusculares e psicocognitivos — interagem de forma não linear. O uso combinado de biomarcadores fisiológicos, testes funcionais e medidas subjetivas viabiliza uma gestão mais precisa da carga e da recuperação, permitindo prevenir o overtraining, reduzir o risco de lesões, otimizar a prescrição de treino e antecipar estados de fadiga e prontidão por meio de modelos preditivos. A incorporação de tecnologias portáteis, dispositivos vestíveis e análises em tempo real amplia ainda mais as possibilidades de aplicação, aproximando a prática esportiva da fisiologia personalizada e da medicina de precisão.

Ainda assim, subsistem limitações metodológicas que exigem refinamento contínuo. A ausência de padronização analítica — notadamente em ensaios como o TBARS, cuja especificidade é contestada —, a influência de variáveis extrínsecas (sono, nutrição, hidratação, fase do ciclo menstrual) e a dificuldade de extrapolar resultados laboratoriais para contextos de campo permanecem como desafios centrais. O futuro da disciplina aponta para a integração entre biologia de sistemas e inteligência artificial, permitindo a construção de modelos dinâmicos que aprendem com os próprios dados do atleta e se ajustam progressivamente à sua trajetória fisiológica individual.

Em síntese, os avanços recentes na pesquisa sobre biomarcadores do exercício de endurance sinalizam uma transformação paradigmática: da busca por médias normativas à compreensão das singularidades fisiológicas. Enquanto os estudos de Reichel e colaboradores consolidaram a confiabilidade de um conjunto de marcadores biológicos e funcionais — TBARS, LDH, IL-1RA, MCV, MVC e MDMQ —, as análises conduzidas por Hacker e colegas avançaram para o mapeamento da regulação individual e do valor preditivo dessas mesmas variáveis, inaugurando uma era de biomonitorização personalizada. Nessa nova fronteira, a convergência entre dados biológicos, comportamentais e subjetivos não apenas redefine o conceito de desempenho esportivo, mas também amplia os horizontes da saúde e da longevidade humana sob a ótica científica e ética da fisiologia aplicada.

 Referências:

Hacker S, Keck J, Reichel T, et al. Biomarkers in Endurance Exercise: Individualized Regulation and Predictive Value. Transl Sports Med. 2023;2023:6614990.

Haller N, Behringer M, Reichel T, et al. Blood-Based Biomarkers for Managing Workload in Athletes: Considerations and Recommendations for Evidence-Based Use of Established Biomarkers. Sports Med. 2023;53(7):1315-1333.

Małkowska, P., & Sawczuk, M. (2023). Cytokines as Biomarkers for Evaluating Physical Exercise in Trained and Non-Trained Individuals: A Narrative Review. International Journal of Molecular Sciences24(13), 11156.

Reichel T, Boßlau TK, Palmowski J, et al. Reliability and suitability of physiological exercise response and recovery markers. Sci Rep. 2020;10(1):11924.