Água e Endurance: desafios, contaminação e soluções inteligentes para o futuro

por | set 22, 2025

Imagine-se pedalando há várias horas sob o sol forte. O corpo já deu sinais de desidratação, a garrafa está vazia e a sede aperta. Parar em qualquer ponto da estrada parece a solução mais simples: comprar uma água engarrafada de procedência duvidosa ou recorrer a uma fonte natural. No entanto, a qualidade dessa água pode estar comprometida. O problema não é apenas individual, mas coletivo. A água, recurso da natureza fundamental à vida, encontra-se sob ameaça crescente em função de práticas humanas que afetam tanto sua disponibilidade quanto sua segurança.

Entre os riscos mais relevantes está a toxoplasmose, causada pelo protozoário Toxoplasma gondii, cujo ciclo envolve felinos como hospedeiros definitivos. No Brasil, a água contaminada por oocistos é uma das principais vias de transmissão, com surtos de ampla magnitude. Além do possivel envolvimento em tumores cerebrais, a forma ocular da doença pode levar à perda de visão. Além disso, metais pesados como arsênio e mercúrio estão presentes em muitos corpos hídricos. O mercúrio, particularmente, tem impactos graves sobre o sistema nervoso e os rins, podendo causar problemas de desenvolvimento cognitivo e motor em crianças e adultos. Episódios recentes no Rio Tapajós, ligados à mineração ilegal de ouro, evidenciam a contaminação da água por mercúrio e os riscos diretos à saúde das populações ribeirinhas.

Outro inimigo invisível é o arsênio, um metaloide tóxico classificado como agente carcinogênico pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer. Sua presença em águas subterrâneas é comum em áreas de mineração e, quando ingerido em concentrações acima de 10 µg/L, pode causar sérios danos à saúde humana, incluindo câncer de pele, bexiga e pulmão. Além disso, o arsênio se acumula na cadeia alimentar, contaminando peixes e moluscos. Estudos recentes da UFMG mostraram que algumas cianobactérias, como Microcystis novacekii e Synechococcus nidulans, conseguem absorver parte desse contaminante, sugerindo estratégias de biorremediação. Mas, até lá, a principal via de exposição humana continua sendo a água potável contaminada.

O histórico das epidemias mostra que não se trata de um problema novo. No século XIX, durante a epidemia de cólera em Londres, o médico John Snow revolucionou a saúde pública ao demonstrar que a doença não era transmitida pelo “mau cheiro” (miasmas), mas sim pela ingestão de água contaminada. Sua investigação levou à transformação do saneamento urbano e ao princípio básico de separar abastecimento de água de esgoto. Essa lição, aprendida a duras penas, continua atual no Brasil e em muitas regiões do mundo.

Mas a toxoplasmose e a contaminação por arsênio e mercúrio são apenas algumas das faces do problema que atinge proporções calamitosas quando quase 50% da população brasileira não possui saneamento básico adequado. Cerca de 32 milhões de brasileiros vivem sem acesso à água potável e mais de 90 milhões não têm coleta de esgoto. Nem mesmo a água mineral está livre de perigos. Uma pesquisa da Fiocruz analisou galões e garrafas vendidos no Brasil e revelou alto índice de contaminação pela bactéria Pseudomonas aeruginosa, também chamada de “bactéria de nadador”. Entre os galões de 20 litros avaliados, 40% estavam contaminados. Esse microrganismo pode provocar infecções urinárias, respiratórias e até septicemias, principalmente em pessoas com imunidade comprometida como pode ser o caso de atleas super treinados embora mais sucetíveis a infecções respiratórias — um risco silencioso, muitas vezes subestimado no consumo diário.

A crise, porém, não se resume à contaminação. O desmatamento da Amazônia compromete os chamados rios voadores — massas de vapor d’água que, ao se deslocarem da floresta para outras regiões, ajudam a reabastecer os reservatórios do Sudeste. Com o avanço das queimadas e da supressão da vegetação, esse equilíbrio natural é rompido, afetando o regime de chuvas e agravando a escassez hídrica nas áreas mais populosas do país.

Diante desse quadro, fica claro: o problema da falta de água e de sua má qualidade é essencialmente antrópico. A contaminação por protozoários, bactérias e metais pesados, assim como a diminuição da disponibilidade de água potável por alterações climáticas e ambientais, são consequências diretas das escolhas humanas — sejam elas relacionadas à ocupação do solo, à ausência de saneamento ou à degradação de ecossistemas.

Esportes de endurance e vulnerabilidade hídrica

Para atletas de endurance, que convivem com longos períodos em estradas, trilhas e regiões de infraestrutura precária, o dilema da hidratação não é apenas quanto beber, mas sobretudo o que beber. A sede pode ser imediata, mas as consequências da escolha errada podem durar toda uma vida. Garantir água potável e segura não é apenas uma questão de performance esportiva: é uma questão de saúde pública, dignidade humana e direito fundamental. Enquanto políticas de saneamento seguirem negligenciadas, e a escassez hídrica somada à contaminação comprometerem a qualidade da água disponível, cada gole pode carregar riscos invisíveis e significar não apenas queda no rendimento, mas danos permanentes à saúde, especialmente frente a contaminantes químicos e biológicos. Contudo, não é apenas o esporte que está em risco: o endurance da existência humana e de diversos organismos está ameaçado, pois sem água potável, a vida de humanos e animais, e o funcionamento dos ecossistemas, fica comprometido.

 

Caminhos possíveis

O enfrentamento da crise hídrica passa, sobretudo, por prevenção, controle e preservação ambiental. Investir em sistemas universais de saneamento básico, fiscalização rigorosa das águas minerais, monitoramento em tempo real da qualidade da água e tecnologias de filtragem são medidas imediatas e eficazes. Para esportistas e comunidades expostas a maiores riscos, soluções como filtros portáteis de alto desempenho, sistemas de cloração comunitária e campanhas de conscientização sobre higiene de galões e reservatórios domésticos podem reduzir significativamente a carga de contaminação.

No entanto, nenhuma dessas medidas será duradoura sem a proteção das florestas e do equilíbrio ecológico. A Amazônia sustenta os rios voadores que irrigam o Centro-Sul do país; sua preservação, a conservação de matas ciliares, o manejo sustentável do solo e o combate ao desmatamento ilegal são essenciais para garantir recarga de aquíferos, regularidade das chuvas e qualidade da água. Cuidar das florestas é, portanto, uma política inteligente de saúde pública, conservação ambiental e proteção do esporte.

Conclusão

A água potável segura é um direito humano e condição indispensável à saúde, à vida e ao esporte. A realidade brasileira mostra que tanto a escassez quanto a má qualidade da água são resultados diretos da ação humana. Enfrentar esse desafio exige integração entre ciência, esporte, políticas públicas e consciência coletiva. A pergunta que permanece é: diante desse cenário, qual será o futuro  da existência humana e da vida em nossos ecossistemas, se a água — base vital de todos os organismos — continuar ameaçada?