Introdução
De acordo com a segunda lei da termodinâmica, a entropia tende a aumentar continuamente no universo, de modo que existe uma tendência intrinsecamente natural à desordem. Construir pode ser difícil mas perder o que se conquistou é um processo muito mais rápido. A manutenção da ordem em qualquer sistema apresenta um elevado custo energético, e a vida, tal como a concebemos no planeta Terra, só é possível graças a mecanismos fisiológicos que promovem homeostase à custa de entropia negativa.
A realização sistemática de sessões de endurance promove adaptações que aprimoram o rendimento, mas para serem mantidas, exigem estímulos regulares de magnitude adequada. Por outro lado, uma vez conquistadas as adaptações, a interrupção da prática regular leva ao destreinamento, fenômeno que compromete o desempenho atlético e pode até mesmo afetar a saúde.
Nesse contexto, o princípio da reversibilidade estabelece que os ganhos fisiológicos obtidos por meio do treinamento físico podem ser parcial ou totalmente perdidos quando há interrupção ou redução significativa da carga. Essa realidade é particularmente relevante para atletas de alto rendimento, mas também se aplica a praticantes recreacionais e indivíduos que utilizam o exercício como estratégia de promoção da saúde. Compreender os mecanismos associados ao destreinamento é fundamental para elaborar estratégias que minimizem suas consequências e favoreçam a manutenção das adaptações fisiológicas, mesmo em períodos de inatividade.
Cabe ressaltar que, na literatura científica, os termos relacionados nem sempre são usados de forma unificada. Para fins deste texto, “destreinamento” refere-se à perda parcial ou total das adaptações anatômicas, fisiológicas e de desempenho induzidas pelo treinamento, devido à sua interrupção ou redução significativa. Por outro lado, “redução de treino” corresponde à diminuição planejada e não progressiva da carga, podendo inclusive preservar ou otimizar adaptações. Esse termo difere do “polimento”, aonde a redução é progressiva e visa maximizar a performance em competições. Já a “síndrome do destreinamento” corresponde a um quadro clínico observado em atletas de endurance de longa data que cessam abruptamente o exercício, manifestando tonturas, palpitações, ansiedade e distúrbios gastrointestinais.
Consequências fisiológicas do destreinamento
Imagem: https://trainright.com/detraining-truth-about-losing-fitness/
O destreinamento de curto prazo já pode ser observado em períodos inferiores a 4 semanas. Nesse intervalo, atletas altamente treinados apresentam redução de 4–14% no VO₂máx, enquanto praticantes menos experientes perdem cerca de 3–6%. O volume sanguíneo cai entre 5–12% em plasma e eritrócitos, limitando o enchimento ventricular. Esse processo leva a aumento de 5–10% na frequência cardíaca em esforços submáximos e máximos, com redução de 17% no volume sistólico e de 8% no débito cardíaco. Ainda que a capacidade ventilatória raramente seja fator limitante em atletas, com o destreinamento observa-se queda de eficiência dos músculos respiratórios, prejuízo da economia respiratória e aumento do equivalente ventilatório.
Imagem: Coyle et al (1984)
No contexto do metabolismo energético, passa haver maior dependência dos carboidratos, evidenciada pelo aumento do quociente respiratório (RER). Em apenas 10 dias, a sensibilidade à insulina diminui, acompanhada por queda de 17–33% no transportador GLUT-4 muscular. Em uma semana, os estoques de glicogênio reduzem até 20%. Somam-se a esse quadro a queda da atividade da lipoproteína lipase muscular e o aumento da lipemia pós-prandial, resultando em piora do perfil lipídico (redução do colesterol HDL e aumento do LDL).
No sistema muscular, ocorre redução da capilarização, ainda que ela ainda permaneça superior à maioria dos sedentários. Mais crítica é a queda de 25–45% na atividade da citrato sintase e de 12–27% nas enzimas mitocondriais, revelando deterioração profunda da capacidade aeróbica. A massa muscular sofre atrofia, em especial nas fibras de contração rápida, indispensáveis mesmo em provas de endurance de longa duração. Em até 4 semanas, observa-se queda discreta de força e potência gerais, mas significativa redução da força excêntrica e do desempenho específico.
Apesar do exposto, evidencias recentes indicam que o período de treinamento bem elaborado é capaz de aumentar a ativação de células satélite periféricas e elevar significativamente a quantidade de núcleos nas fibras musculares. Esse fenômeno pode manter o potencial para recuperação mais rápida das adaptações perdidas com o destreinamento parcial, sugerindo que se ele não for planejado, a “memória muscular” preservada permitiria rápida recuperação da forma física conquistada.
Imagem: Gundersen (2016)
No eixo endócrino, poderá ocorrer aumento transitório de GH e testosterona, com melhora temporária da relação testosterona/cortisol após duas semanas de inatividade. No entanto, a sensibilidade à insulina cai, sem grandes alterações em cortisol, GH ou catecolaminas. A flexibilidade também se reduz (7–30% em até 4 semanas), perde-se o efeito protetor do exercício sobre a função plaquetária e o risco cardiovascular aumenta.
Como se vê, atletas altamente treinados sofrem perdas mais rápidas e intensas, devido ao elevado nível inicial de adaptação. Iniciantes, por outro lado, apresentam perdas mais lentas e podem sustentar parte dos ganhos por algumas semanas sem prejuízos expressivos.
Estratégias de manejo
Estudos indicam que reduções planejadas da carga podem preservar grande parte das adaptações. Estratégias incluem:
- treinos de manutenção com menor volume, mas intensidade preservada;
- exercícios variados (cross-training) em caso de lesão;
- sessões semanais de HIIT para manutenção do VO₂máx;
- treinos resistidos para preservar força e massa muscular;
- polimento adequado em fases pré-competitivas.
Cumpre salientar que apesar do exposto, que descanso também é treino. Períodos planejados de destreinamento fazem parte da lógica ondulatória de adaptação progressiva, prevenindo sobrecargas cumulativas e permitindo regeneração profunda. O erro mais comum dos atletas ansiosos por aprimorarem seu rendimento, é reduzir excessivamente o volume e compensar com intensidades superiores às recomendadas — uma armadilha que acelera o esgotamento e compromete as adaptações de longo prazo.
Ser atleta em busca do alto rendimento significa aceitar uma rotina quase monástica: comer, treinar e dormir. É difícil imaginar que profissionais com múltiplas ocupações consigam conciliar esse nível de exigência sem caminhar para o overtraining. E, nesse processo, o que normalmente é negligenciado é justamente o descanso, visto com receio ou até pavor de “perder o que já foi conquistado”. Entretanto, ser atleta também é praticar o desapego e confiar no professor que orienta o processo, compreendendo que pausas estratégicas não representam perda, mas investimento na longevidade da performance.
Imagem: Nieman et. al (2017)
Considerações finais
O destreinamento constitui um desafio inevitável na trajetória esportiva. Seus efeitos comprometem o desempenho aeróbico, a força, a composição corporal e parâmetros metabólicos, além de afetarem a saúde cardiovascular e metabólica. Entretanto, quando planejado, calculado e compreendido dentro da lógica da periodização e da adaptação ondulatória, faz parte do processo de evolução esportiva, em vez de ser apenas encarado como perda.
Reconhecer a importância do princípio da reversibilidade, aliado à compreensão de que descanso também faz parte do treinamento, é essencial para atletas, treinadores, profissionais de saúde e praticantes em geral. O destreinamento planejado exige supervisão cuidadosa e a identificação precisa de parâmetros fisiológicos, que atualmente podem ser monitorados com auxílio de novas tecnologias como o VO2 Master, Moxy, Core-2, entre outros. Somente assim é possível elaborar programas eficazes que conciliem estímulo e recuperação, maximizando tanto performance quanto longevidade atlética.
Referência:
Mujika I, Padilla S. Detraining: loss of training-induced physiological and performance adaptations. Part I: short term insufficient training stimulus. Sports Med. 2000 Aug;30(2):79-87. doi: 10.2165/00007256-200030020-00002. PMID: 10966148.
Gundersen K. Muscle memory and a new cellular model for muscle atrophy and hypertrophy. J Exp Biol. 2016 Jan;219(Pt 2):235-42. doi: 10.1242/jeb.124495. PMID: 26792335.
Nieman DC, Mitmesser SH. Potential Impact of Nutrition on Immune System Recovery from Heavy Exertion: A Metabolomics Perspective. Nutrients. 2017 May 18;9(5):513. doi: 10.3390/nu9050513. PMID: 28524103
Coyle EF, Martin WH 3rd, Bloomfield SA, Lowry OH, Holloszy JO. Effects of detraining on responses to submaximal exercise. J Appl Physiol (1985). 1985 Sep;59(3):853-9. doi: 10.1152/jappl.1985.59.3.853. PMID: 3902770.