Cetose, Suplementação de Carboidratos e Desempenho em Endurance: Perspectivas Metabólicas Contemporâneas

por | nov 4, 2025

Embora mais de cinco décadas de evidência prática e teórica sustentem a suplementação de carboidratos em eventos de endurance, o corpo de conhecimento atual permite estabelecer estratégias mais ousadas neste procedimento. De fato, hoje, com o intuito de otimizar a disponibilidade energética e retardar a fadiga, recomenda-se com frequência a ingestão de 90 a 110 gramas por hora, o que representa, em termos simples, o equivalente energético de três a quatro pães franceses administrados na forma líquida ou em géis especializados. Paralelamente a essa evolução das recomendações nutricionais, reflexões bioquímicas conduzidas em grande parte pelo eminente Eric Newsholme estimularam, ainda na década de 1980, discussões acerca do papel dos corpos cetônicos no metabolismo neuromuscular. Argumentava-se que tais moléculas poderiam atuar como fonte complementar aos carboidratos e lipídios, ampliando a capacidade oxidativa muscular e contribuindo para manutenção do desempenho. Contudo, o conhecimento metabólico da época já sinalizava que a presença de glicose representa obstáculo fisiológico à elevação significativa dos níveis de corpos cetônicos, inviabilizando que desempenhem papel energético relevante durante o exercício quando carboidratos são consumidos.

Esse entendimento decorre da linha de investigação liderada por George F. Cahill, que caracterizou, de forma pioneira, os ajustes fisiológicos ao jejum prolongado em humanos. Seus estudos demonstraram que o fígado humano, diferentemente de outros tecidos, pode sintetizar corpos cetônicos a partir do acúmulo intramitocondrial de acetil-CoA gerado pela intensa β-oxidação dos ácidos graxos, sendo essa via crucial para a manutenção da função cerebral em situações extremas de privação energética. Entretanto, no contexto fisiológico típico do exercício com ingestão de carboidratos, a secreção residual de insulina — mesmo atenuada pela ativação simpatoadrenal — exerce inibição suficiente sobre a lipólise, reduzindo a mobilização de ácidos graxos e, por consequência, limitando o potencial cetogênico hepático. Cabe ressaltar que mesmo na completa ausência de carboidratos, níveis expressivos de corpos cetônicos no sangue emergem somente após 72 a 96 horas de jejum, o que ilustra a impossibilidade fisiológica de sua elevação substancial em provas esportivas onde carboidratos são ingeridos continuamente.

 

     

Imagem: Efeitos dos corpos cetônicos na excitabilidade celular, na expressão de genes e na sinalização celular. Tais efeitos em longo prazo contribuiriam positivamente para o rendimento aeróbico. From: García-Rodríguez D, Giménez-Cassina A. Ketone Bodies in the Brain Beyond Fuel Metabolism: From Excitability to Gene Expression and Cell Signaling. Front Mol Neurosci. 2021 Aug 27;14:732120.

Na última década, ganhou força a discussão sobre o consumo oral de corpos cetônicos, impulsionada pelo reconhecimento de que dietas cetogênicas, embora fisiológicas e com aplicações terapêuticas, não produzem ganhos de desempenho em modalidades de endurance que exigem elevada potência sustentada. A partir desse cenário, surgiu o interesse pela suplementação exógena de cetonas, sobretudo β-hidroxibutirato (βHB) administrado sob a forma de ésteres (KME) ou sais (KS), capaz de induzir cetose nutricional aguda independente da privação de carboidratos. Essa abordagem introduziu a possibilidade de que o músculo esquelético pudesse oxidar corpos cetônicos diretamente, reduzindo a dependência da glicólise e, teoricamente, poupando glicogênio, variável determinante do desempenho em esforços prolongados.

Fonte: Pinckaers PJ, Churchward-Venne TA, Bailey D, van Loon LJ. Ketone Bodies and Exercise Performance: The Next Magic Bullet or Merely Hype?. Sports Med. 2017;47(3):383-391.

Adicionalmente ao papel como substratos, os corpos cetônicos emergem como moduladores bioquímicos com ação sobre vias inflamatórias e estresse oxidativo, além de sinalizarem modificações epigenéticas que podem influenciar a função neuromuscular e o eixo de fadiga central. Em modelos experimentais iniciais, observou-se que a coexistência de βHB com carboidratos poderia atenuar a produção de lactato e deslocar o balanço metabólico para maior eficiência oxidativa. Contudo, estudos mais recentes e rigorosamente controlados apresentaram resultados inconsistentes, indicando que esse potencial teórico não se traduz universalmente em melhoria de desempenho. Um fator crítico é que a elevação de corpos cetônicos pode inibir etapas-chave da glicólise — como a fosfofrutoquinase e o complexo piruvato-desidrogenase — restringindo a capacidade de produção rápida de ATP em intensidades mais elevadas, aspecto decisivo em provas com variações de ritmo e sprints decisórios.

Assim, a suplementação de cetonas exógenas revela uma ambiguidade fisiológica: se, por um lado, pode reduzir a dependência do glicogênio e modular positivamente o ambiente bioquímico muscular, por outro, pode comprometer o metabolismo glicolítico quando este se torna essencial, impondo risco ergolítico em cenários de alta potência. A despeito dessa limitação no componente agudo da performance, vem crescendo o interesse na investigação dos efeitos das cetonas na recuperação pós-esforço, em especial pela capacidade de atenuar respostas inflamatórias, favorecer a ressíntese de glicogênio e contribuir para homeostase neurometabólica, com potenciais implicações também em condições clínicas como trauma craniano e hipóxia aguda.

Diante das evidências atuais, conclui-se que a suplementação de corpos cetônicos representa uma intervenção fisiologicamente sofisticada, porém ainda distante de uma recomendação ergogênica consolidada. Seu uso prático deve ser restrito a contextos experimentais, com rigor metodológico, adequadamente integrado à ingestão de carboidratos e considerando o perfil da modalidade esportiva e das demandas bioenergéticas específicas. Até que um corpo de evidências mais robusto e reprodutível seja estabelecido, a suplementação de cetonas deve permanecer como estratégia complementar emergente, jamais substitutiva ou concorrente das recomendações nutricionais clássicas, entre as quais o manejo adequado da ingestão de carboidratos continua sendo a intervenção mais eficaz para sustentar o desempenho em esportes de endurance.

Referências:

García-Rodríguez D, Giménez-Cassina A. Ketone Bodies in the Brain Beyond Fuel Metabolism: From Excitability to Gene Expression and Cell Signaling. Front Mol Neurosci. 2021;14:732120.

Khouri H, Ussher JR, Aguer C. Exogenous Ketone Supplementation and Ketogenic Diets for Exercise: Considering the Effect on Skeletal Muscle Metabolism. Nutrients. 2023;15(19):4228.

Pinckaers PJ, Churchward-Venne TA, Bailey D, van Loon LJ. Ketone Bodies and Exercise Performance: The Next Magic Bullet or Merely Hype?. Sports Med. 2017;47(3):383-391.

Robberechts R, Poffé C. Defining ketone supplementation: the evolving evidence for postexercise ketone supplementation to improve recovery and adaptation to exercise. Am J Physiol Cell Physiol. 2024;326(1):C143-C160.

Valenzuela PL, Castillo-García A, Morales JS, Lucia A. Perspective: Ketone Supplementation in Sports-Does It Work?. Adv Nutr. 2021;12(2):305-315.