Meios não naturais de aumentar o VO₂ e os limiares metabólicos: fundamentos fisiológicos, persistência dos efeitos e desafios ético-regulatórios no esporte

por | nov 2, 2025

A discussão sobre desempenho esportivo de alto nível, após décadas de observação de atletas olímpicos, ciclistas de grandes voltas e outros atletas de modalidades de endurance, não permite mais ingenuidade: a maior parte dos métodos farmacológicos e hematológicos usados para elevar o consumo máximo de oxigênio (VO₂máx) e deslocar para cima os limiares metabólicos é, por definição, artificial, não fisiológica e, sobretudo, desleal. A utilização de performance-enhancing drugs (PEDs) e de artifícios de manipulação sanguínea corrói o princípio de oportunidade igual, ameaça a saúde do atleta e cria um legado de vantagens fisiológicas que podem perdurar para além do período de sanção. É justamente esse potencial de efeitos duradouros — que não “desaparecem” quando o atleta cumpre a pena — que torna o problema atual mais sofisticado e mais grave.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Doping_in_sport#/media/File:Berlinger_Bereg_Kit_doping_sampling_bottles_by_Augustas_Didzgalvis.jpg a) Por que o VO₂ e os limiares metabólicos são alvos de doping?

1- O desempenho em provas de 3–6 minutos (remo 2000 m, corrida 3000–5000 m), em esforços cíclicos prolongados (ciclismo de estrada, esqui, natação de fundo) e mesmo em esportes de caráter intermitente é fortemente condicionado por três blocos fisiológicos: (i) o VO₂máx, definido como produto do débito cardíaco máximo pela diferença arteriovenosa de O₂; (ii) a fração do VO₂máx que pode ser sustentada sem acúmulo intolerável de lactato (limiar de lactato/limiar ventilatório/critical power); e (iii) o custo energético do movimento.

Drogas e métodos que aumentem o conteúdo arterial de oxigênio (CaO₂), que permitam maior extração muscular de O₂ durante exercício pesado ou que reduzam transitoriamente o estresse metabólico para uma mesma carga terão, quase inevitavelmente, efeito positivo sobre o rendimento.

É por isso que duas famílias de práticas ilícitas dominaram o cenário nas últimas décadas:

a) o uso de esteroides anabólico-androgênicos (EAA), principalmente pelo efeito sobre massa e força musculares; e

b) o chamado blood doping — transfusões autólogas e administração de eritropoietina recombinante (rhEPO) em diferentes esquemas, inclusive microdosagens.

Fonte: Breenfeldt Andersen A, Nordsborg NB, Bonne TC, Bejder J. Contemporary blood doping-Performance, mechanism, and detection. Scand J Med Sci Sports. 2024;34(1):e14243. 

2. Esteroides anabólicos e a noção de “memória muscular” como vantagem de longo prazo

Os EAA foram, historicamente, associados ao ganho rápido de força e de massa magra, benefícios que explicam o seu apelo para atletas de força e potência. O que os últimos 20 anos de pesquisa acrescentaram foi a hipótese — hoje apoiada por dados em humanos e em modelos animais — de que parte dos efeitos dos EAA não se esvai com a suspensão. Estudos clássicos de Kadi e Eriksson mostraram que halterofilistas que admitiram uso prolongado de EAA (>10 anos) apresentavam não apenas fibras maiores, mas também maior número de mionúcleos por fibra do que atletas nunca expostos.

Em modelo murino, um curto ciclo de testosterona aumentou área de fibra e mionucleação; quando o anabolizante foi retirado, a área retornou ao basal, mas o número de mionúcleos permaneceu elevado por meses — o que, ajustando para a expectativa de vida do animal, equivaleria a muitos anos em humanos. Esse estoque adicional de mionúcleos facilita posteriores fases de sobrecarga, isto é, o músculo volta a crescer mais rápido do que cresceria em um indivíduo nunca dopado.

Estudos mais recentes em ex-usuários humanos reforçam essa interpretação: mesmo 4 anos após interromper EAA, indivíduos treinando com a mesma frequência que controles apresentam maior massa magra, maior força máxima e maior densidade de mionúcleos, diretamente relacionada ao tempo de exposição prévio. Isso significa que o doping anabólico pode legar uma “capacidade de remodelamento” muscular aumentada por anos — exatamente o cenário mais injusto do ponto de vista regulatório, porque o atleta cumpre a pena, mas não devolve o ganho estrutural.

Do ponto de vista de política antidoping, esse conjunto de achados coloca na mesa a discussão de sanções mais longas ou mesmo de inelegibilidade vitalícia em modalidades extremamente sensíveis a pequenas diferenças de força e potência, como já foi argumentado na literatura: se 1% decide títulos, manter, por via ilícita, 1–2% de vantagem estrutural por muitos anos não pode ser tratado como uma infração de curto prazo.

Fonte:Valenzuela PL, Sitko S, Pitsiladis Y. Persistent physiological benefits from doping? Ethical implications for sports integrity. J Appl Physiol (1985). 2024;137(4):1068-1070.

3- Manipulação hematológica: de grandes volumes a micro-doses

Se o anabolizante atua sobretudo no músculo, o blood doping atua no transporte de oxigênio. Desde os Jogos do México, em 1968, quando o COI passou a testar e, décadas depois, com a criação da WADA, sabe-se que atletas tentam aumentar a massa de hemácias para elevar o VO₂máx. Inicialmente, isso ocorreu por transfusões de 1 bolsa ou mais (450–1350 mL de sangue total) ou por protocolos relativamente altos de rhEPO. Esses procedimentos aumentam hematócrito, CaO₂, extração de O₂ e, de forma muito consistente, VO₂peak e tempo até a exaustão.

Estudos de meados do século XX já mostravam que reinfundir 600 mL de sangue aumentava o tempo de exercício em torno de 4%. Em décadas seguintes, trabalhos bem controlados mostraram que volumes entre 450 e 3500 mL melhoram VO₂máx, provas contrarrelógio e tempo até a exaustão em homens treinados.

Com o aperfeiçoamento dos métodos de detecção, o comportamento de quem frauda também mudou. Em vez de grandes volumes, surgiram regimes de micro-dosagem: reinfusão de apenas 130–135 mL de concentrado de hemácias ou injeções repetidas de 9–20 UI·kg⁻¹ de eritropoitina. Ainda assim, dois achados são decisivos:

  • mesmo 130 mL de hemácias, reinfundidos após recuperação plena da flebotomia, aumentam a potência média e reduzem o tempo de prova em cerca de 4–6% em contrarrelógios de ciclismo de 650 kcal;
  • três injeções semanais de 9 UI·kg⁻¹ de eritropoitina β por 4 semanas aumentam a massa total de hemoglobina em ~7% e o desempenho aeróbio em ~4%, em homens e mulheres, sem qualquer outro artifício.

Ou seja: aumentos muito pequenos de massa eritrocitária, deliberadamente escolhidos para “ficar abaixo do radar”, já são suficientes para deslocar o teto aeróbio e o limiar funcional — exatamente o que decide provas de meio fundo e etapas decisivas de provas de estrada.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Doping_in_sport#/media/File:FlattenedRoundPills.jpg

4- Como esses métodos aumentam o VO₂ e os limiares?

É importante sublinhar um ponto frequentemente mal compreendido: nem a rhEPO nem a transfusão autóloga parecem aumentar o débito cardíaco máximo. Em estudos que mediram diretamente o débito após 13 semanas de eritropoetina, o VO₂máx subiu, mas o débito máximo permaneceu inalterado; o mesmo se observou após reinfusão de hemácias. A explicação fisiológica mais razoável é que o aumento de CaO₂ — maior [Hb] e maior conteúdo de O₂ por unidade de sangue — permite ao músculo extrair mais oxigênio para um mesmo fluxo. Em exercícios de alta intensidade (≥60–75% da potência de pico), há uma deflexão do fluxo sanguíneo de membros inferiores e uma limitação progressiva do volume sistólico; nesse cenário, qualquer intervenção que eleve o conteúdo de O₂ do sangue “compensa” a insuficiência de fluxo e sustenta a oxidação por mais tempo. É por isso que, após transfusão autóloga (ABT) ou eritropitina recombinante (rhEPO), se observa:

  • maior extração periférica de O₂;
  • menores concentrações de lactato em submáximos após ABT de maior volume;
  • capacidade de sustentar potências mais altas por igual duração, mesmo sem melhora de eficiência mecânica.

Em termos práticos: se um corredor de 5000 m correndo a 23,8 km·h⁻¹ está competindo muito próximo ao seu VO₂máx, um aumento de apenas 5% desse teto obtido por micro-dose de EPO pode significar mais de 30 s de vantagem teórica — tempo suficiente para reescrever recordes.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Doping_in_sport#/media/File:Syringe_Needle_IV.jpg

5- Por que o problema não termina com a suspensão?

Há duas razões principais pelas quais o doping em capacidade aeróbia pode deixar um “eco” fisiológico:

  1. porque o uso de EAA pode deixar um músculo com mais mionúcleos, mais pronto para crescer com menos estímulo, por anos;
  2. porque exposições repetidas a cargas de treino muito elevadas, viabilizadas por doping hematológico (já que o atleta recupera mais rápido e consegue treinar mais), podem induzir remodelamento cardíaco e vascular superiores ao que obteria naturalmente.

No segundo caso, a literatura é mais cautelosa, porque adaptações como o aumento do ventrículo esquerdo parecem regredir com o destreinamento. Mas, no primeiro caso, a evidência é cada vez mais persuasiva: mionúcleos adicionais permanecem, e isso configura uma vantagem que o atleta natural não consegue “alcançar”.

  1. Detecção: o que o passaporte biológico vê — e o que ele ainda não vê

Desde 2009, o Passaporte Biológico do Atleta (ABP) é o principal instrumento indireto de detecção de doping hematológico. Ele parte de uma lógica inteligente: não compara o atleta a uma população, mas ao próprio histórico. Mesmo assim, quando as doses ficam muito baixas — os cenários de micro-ABT ou micro-EPO —, a sensibilidade cai.

Os dados experimentais mostram que:

  • com micro-dose de EPO (10–20 UI·kg⁻¹ 2–3x/sem por poucas semanas), apenas 20–60% dos atletas apresentam uma “atipicidade” nos marcadores primários ([Hb] e OFF-score), e isso depende fortemente da frequência de coleta;
  • com reinfusão de ~130 mL de hemácias, a taxa de passaportes atípicos pode ficar em 30% ou menos até 6 dias depois da transfusão.

Por isso, a comunidade tem olhado para biomarcadores secundários que praticamente não sofrem com flutuações de volume plasmático e que respondem muito rápido ao estímulo eritropoiético, como:

  • percentual de reticulócitos;
  • fração de reticulócitos imaturos;
  • razão reticulócito imaturo/hemácia;
  • ABPS (Abnormal Blood Profile Score), que combina sete parâmetros hematológicos por meio de modelos bayesianos e SVM.

Em alguns protocolos de micro-EPO, incluir reticulócitos como marcador primário elevou a detecção de 56% para 72%; incluir ABPS elevou de 45% para 65% em protocolos moderados. Marcadores emergentes de regulação do ferro, como hepcidina e eritroferona, também se alteram após doação e reinfusão de sangue e após EPO, mas, isoladamente, ainda não oferecem especificidade suficiente — e são muito sensíveis a altitude, ferro oral e até a variações de treino.

O caminho mais promissor, portanto, não é um único novo exame “milagroso”, mas sim: (i) aumentar a frequência e a inteligência das coletas (target testing em períodos suspeitos); (ii) incorporar biomarcadores de eritropoiese mais precoces — IRF e IR/RBC — ao software oficial; e (iii) explorar painéis ômicos (transcritoma, proteoma de hemácias armazenadas, metabólitos de plásticos de bolsas) que já mostraram, em estudos controlados, que reinfusões deixam assinaturas bioquímicas detectáveis.

6- Questões éticas e regulatórias

Se admitirmos, à luz dos dados, que:

  • esteroides podem deixar vantagens de mionucleação por anos;
  • micro-doses de sangue/EPO já melhoram desempenho em 4–6%, mas muitas vezes ficam abaixo dos limiares de alarme;
  • sucessos em esporte de elite são decididos por diferenças inferiores a 1%,

então a conclusão inevitável é que o modelo atual de sanção temporária não resolve por completo o problema da equidade. Por isso aparecem na literatura e em fóruns técnicos propostas como: ampliar a janela de inelegibilidade para substâncias de efeito estrutural; criar categorias de “ex-dopados” com monitoramento reforçado; ou, no limite, adotar banimentos vitalícios como forma de dissuasão máxima. Note-se: não se trata de perseguição moral, mas de restaurar o único ativo realmente não negociável do esporte — a confiança de que o resultado espelha o mérito.

7- Conclusão

O uso de meios não naturais para aumentar o VO₂ e os limiares metabólicos hoje é mais sutil, melhor informado e, por isso mesmo, mais perigoso. A pesquisa recente mostrou três verdades incômodas: (1) pequenas manipulações funcionam; (2) parte dos efeitos, sobretudo musculares, pode persistir muito além do período de uso; e (3) os sistemas de detecção ainda não têm sensibilidade uniforme para esses esquemas. Isso reforça a necessidade de uma dupla estratégia: científica, para ampliar marcadores e modelagens capazes de identificar micro-doses; e política, para que as punições sejam proporcionais não só ao ato, mas ao benefício duradouro que ele deixa.

Até que isso se consolide, o compromisso do fisiologista do esporte experiente precisa permanecer o mesmo de sempre: defender o treinamento bem planejado, a individualização das cargas, a periodização inteligente e o respeito aos limites biológicos como caminho legítimo para a alta performance — e denunciar, com base em dados, que atalhos farmacológicos e hematológicos não são apenas antiéticos; eles desfiguram a própria lógica competitiva que justifica o esporte.

Referências:

Breenfeldt Andersen A, Nordsborg NB, Bonne TC, Bejder J. Contemporary blood doping-Performance, mechanism, and detection. Scand J Med Sci Sports. 2024;34(1):e14243.

Valenzuela PL, Sitko S, Pitsiladis Y. Persistent physiological benefits from doping? Ethical implications for sports integrity. J Appl Physiol (1985). 2024;137(4):1068-1070.