A evolução do conceito de zonas de treinamento representa uma das transformações mais profundas da fisiologia aplicada ao esporte de endurance. O que começou como um modelo baseado unicamente em concentrações de lactato — como proposto por Maglischo (2003) e amplamente difundido na natação —, hoje se tornou um modelo integrado, que considera simultaneamente a ventilação, o recrutamento de fibras musculares e a dinâmica de oxigenação tecidual.
O lactato como elo metabólico (Brooks, 1985–2020)
Durante décadas, acreditou-se que o lactato era um subproduto indesejado do metabolismo anaeróbico. George Brooks refutou essa visão ao propor a teoria do Lactate Shuttle, demonstrando que o lactato é continuamente produzido mesmo em intensidades submáximas e predominantemente aeróbicas.
Essa produção decorre principalmente das fibras do tipo II (rápidas), que, apesar de recrutadas em menor proporção, possuem alta atividade glicolítica e geram lactato como intermediário energético. Esse lactato, longe de representar “fadiga”, atua como molécula sinalizadora e transportadora de energia, sendo reciclado em fibras tipo I, no coração e no fígado para produção oxidativa de ATP.
Assim, quanto melhor o treinamento aeróbico, maior a eficiência na produção, transporte e oxidação do lactato, o que desloca a curva de lactato para a direita e eleva a capacidade funcional do atleta.

Correlação entre Lactato, Ventilação e SmO₂
Deslocamento da Curva de Lactato para a Direita (Adaptação Positiva)
Quando o atleta desenvolve sua base aeróbica e aumenta a capacidade oxidativa das fibras do tipo I e do tipo IIa, ocorre uma série de adaptações sistêmicas:
- Ventilação: o VT1 e o VT2 ocorrem em intensidades mais elevadas. O atleta ventila menos para uma mesma carga submáxima, indicando maior eficiência no controle químico da respiração.
- Lactato: a curva desloca-se para a direita; há menor acúmulo para a mesma intensidade.
- SmO₂: a saturação muscular de O₂ tende a se manter mais alta durante esforços moderados, pois o músculo consome menos oxigênio relativo à sua capacidade de entrega. Durante esforços intensos, a recuperação pós-desoxigenação é mais rápida, refletindo melhor perfusão e capacidade mitocondrial.
- Recrutamento de fibras: menor dependência de fibras rápidas em cargas médias; as fibras lentas assumem maior parte do trabalho, o que reduz a produção de lactato precoce.
Em resumo, há integração entre eficiência ventilatória, estabilidade metabólica e oxigenação tecidual. O corpo “faz mais com menos”.
Deslocamento da Curva de Lactato para a Esquerda (Adaptação Negativa)
Quando o treinamento é interrompido, mal periodizado ou excessivamente intenso, o corpo perde eficiência oxidativa. As consequências são amplas:
- Ventilação: o VT1 e o VT2 ocorrem em intensidades mais baixas. O atleta começa a hiperventilar precocemente, indicando aumento da acidose metabólica e menor tamponamento.
- Lactato: há acúmulo precoce, mesmo em cargas submáximas.
- SmO₂: observa-se queda rápida da saturação durante esforços moderados, refletindo má perfusão muscular e limitação na utilização de O₂. A recuperação pós-esforço é mais lenta, evidenciando baixa capacidade oxidativa e menor densidade mitocondrial.
- Recrutamento de fibras: ocorre recrutamento prematuro de fibras tipo II, mesmo em intensidades baixas, aumentando a produção de lactato e reduzindo a economia de movimento.
Essa condição revela desintegração entre ventilação, metabolismo e perfusão muscular, típica de estados de destreinamento, overreaching não funcional ou déficit energético crônico.
O Limiar Ventilatório como Reflexo Sistêmico do Limiar Metabólico
O primeiro limiar ventilatório (VT1) coincide aproximadamente com o limiar aeróbico, marcando o ponto em que a ventilação começa a subir de modo não linear pela elevação de CO₂ proveniente do tamponamento de H⁺. Já o segundo limiar ventilatório (VT2) reflete a acumulação significativa de lactato, momento em que o corpo passa a ventilar de modo desproporcional para compensar a acidose.
Quando o treinamento melhora a eficiência aeróbica:
- O VT1 e o VT2 deslocam-se para intensidades mais elevadas,
- O lactato acumula mais tardiamente,
- E a SmO₂ mantém-se mais estável até níveis próximos ao VO₂máx.
Em contraste, na condição oposta (deslocamento da curva para a esquerda), o VT1 aparece precocemente, a SmO₂ cai rapidamente e o atleta perde a capacidade de sustentar a ventilação de maneira eficiente.
Síntese Integrada: Lactato, Ventilação e Oxigenação
O comportamento combinado de lactato, limiares ventilatórios e SmO₂ descreve com precisão o estado funcional do atleta:
- Curva para a direita: ventilação eficiente, maior SmO₂, limiares deslocados para intensidades mais altas — sinal de alta performance aeróbica.
- Curva para a esquerda: ventilação precoce, SmO₂ instável e limiares reduzidos — sinal de fadiga crônica ou destreinamento.
Assim, o lactato deve ser entendido não como marcador isolado, mas como componente de um triângulo fisiológico:
- Produção e utilização de lactato (metabolismo muscular);
- Resposta ventilatória (controle ácido-base e eficiência respiratória);
- Oxigenação muscular (SmO₂ como marcador de equilíbrio entre oferta e consumo de O₂).
O treino verdadeiramente eficaz é aquele que promove coerência entre esses três sistemas, ampliando a zona de estabilidade metabólica e empurrando todos os limiares fisiológicos para a direita — um indicativo inequívoco de adaptação positiva e performance sustentável.
Casos interessantes
Em raras situações, o atleta pode apresentar aumento da ventilação concomitante a uma elevação ou manutenção da SmO₂ muscular. Tal situação pode ser interpretada à luz de mecanismos complexos de recrutamento e fadiga muscular, bem como das adaptações metabólicas induzidas pelo treinamento. Com se sabe, o lactato não é apenas um subproduto do metabolismo anaeróbico, mas também um combustível oxidativo produzido mesmo em intensidades submáximas, particularmente pelas fibras rápidas tipo II, à medida que a intensidade do exercício aumenta. Assim, mesmo em esforços predominantemente aeróbicos, pode haver produção significativa de lactato pelas fibras rápidas, que é posteriormente oxidado pelas fibras lentas tipo I.
Quando observamos aumento da ventilação sem queda significativa da SmO₂, uma hipótese plausível é que as fibras lentas estejam temporariamente incapazes de utilizar eficientemente o oxigênio disponibilizado, seja por fadiga acumulada ou por alterações na sinalização metabólica, como ocorre em situações de overreaching funcional. Nesses casos, embora o limiar ventilatório 2 (VT2) possa permanecer estável, a percepção de esforço se eleva, refletindo uma menor eficiência periférica na utilização de oxigênio e uma necessidade compensatória de ventilação para manter o fornecimento adequado de substratos e tamponamento de H⁺.
O deslocamento da curva de lactato, seja para a direita ou para a esquerda, também se integra a essa interpretação. Um deslocamento para a direita, indicando maior tolerância ao lactato e melhor capacidade oxidativa, normalmente correlaciona-se com um aumento do VT2 e manutenção ou elevação da SmO₂ em intensidades submáximas. Por outro lado, um deslocamento para a esquerda, refletindo menor capacidade de tamponamento ou fadiga metabólica, poderia gerar elevação precoce do lactato, aumento da ventilação e potencial redução da SmO₂, mesmo sem alterações no VT2, evidenciando a dissociação entre limiares ventilatórios e metabolismo muscular local.
Portanto, o quadro de aumento da ventilação concomitante à manutenção ou aumento da SmO₂, associado a percepção de esforço elevada, pode refletir uma combinação de recrutamento incompleto ou fadiga das fibras lentas, produção de lactato pelas fibras rápidas e sobrecarga metabólica funcional, especialmente em contextos de overreaching. A análise integrada de lactato, ventilação, SmO₂ e tipos de fibras permite, assim, uma compreensão mais refinada das respostas fisiológicas ao treinamento, ultrapassando a interpretação clássica baseada apenas em limiares e intensidades relativas.
Além das adaptações crônicas de treinamento, o estado energético do músculo exerce papel crucial no comportamento da curva de lactato e na capacidade de atingir o VO₂máx. Quando há depleção significativa de glicogênio, particularmente nas fibras tipo I e IIa, ocorre um comprometimento da produção de ATP aeróbico, reduzindo a eficiência da oxidação do lactato pelas fibras lentas. Esse efeito pode provocar um deslocamento da curva de lactato para a direita, refletindo uma maior concentração de lactato em intensidades submáximas ou um atraso na sua produção máxima, mas paradoxalmente o atleta não consegue atingir o VO₂máx.
Nessa condição, a ventilação pode aumentar como tentativa compensatória de manter a homeostase ácido-base e fornecer oxigênio às fibras residuais funcionais, enquanto a SmO₂ pode se manter ou até aumentar, indicando que o oxigênio está disponível, mas não é totalmente utilizado pelo metabolismo muscular devido à limitação de substrato (glicogênio) ou fadiga metabólica periférica. A percepção de esforço, portanto, se eleva mesmo sem alterações significativas nos limiares ventilatórios, o que caracteriza um estado de sobrecarga metabólica funcional ou functional overreaching.
Dessa forma, o deslocamento da curva de lactato deve ser interpretado dentro do contexto do estado energético muscular, do recrutamento de fibras e das adaptações aeróbicas, reforçando a necessidade de integração entre lactato, SmO₂, ventilação e percepção de esforço para compreender o desempenho e as respostas fisiológicas em diferentes condições de treino e fadiga.
Referências:
Maglischo, E. W. (2003). Swimming Fastest: The Essential Reference on Technique, Training, and Program Design Champaign, IL: Human Kinetics.
Smith DJ, Norris SR, Hogg JM. Performance evaluation of swimmers: scientific tools. Sports Med. 2002;32(9):539-54.