Nos últimos anos, o lactato tem deixado de ser compreendido como um resíduo metabólico resultante de falta de oxigênio passando a ser reconhecido como um intermediário central da bioenergética. A literatura atual demonstra que o L-lactato é continuamente produzido e utilizado em condições totalmente aeróbias, operando como elo regulatório entre glicólise e metabolismo oxidativo e exercendo funções de sinalização celular, além de servir de precursor para gliconeogênese. Esta mudança paradigmática é sustentada por evidências que descrevem o lactato como fulcro da integração metabólica e da homeostase energética do organismo.
Produção e utilização do lactato sob condições aeróbias
A produção de lactato não representa interrupção do fluxo glicolítico para o metabolismo oxidativo, mas sim uma via fisiológica dominante mesmo quando a oferta de oxigênio é adequada e superior ao limiar crítico mitocondrial. A razão lactato/ piruvato elevada no músculo ativo confirma que o produto final da glicólise in vivo é predominantemente o lactato, com piruvato sendo intermediário de curta persistência. Ademais, sua remoção durante o exercício ocorre majoritariamente por oxidação mitocondrial, correspondendo a 70–80% do destino metabólico do composto.
Teoria do Lactate Shuttle
O conceito do Lactate Shuttle descreve os fluxos intrínsecos de lactato como substrato energético, precursor gliconeogênico e molécula sinalizadora. As trocas se estabelecem entre células produtoras e consumidoras através de gradientes de concentração, pH e pela ação de transportadores MCT de fluxo bidirecional. Tais dinâmicas operam em múltiplas escalas: intracelulares (citosol-mitocôndria e citosol-peroxissomos) e inter-tecidos (fibras rápidas para fibras lentas, músculo para coração, músculo para cérebro e músculo para fígado/ rim).

Brooks GA. The Science and Translation of Lactate Shuttle Theory. Cell Metab. 2018 Apr 3;27(4):757-785.
Lactato como principal combustível oxidativo
Em situações fisiológicas como exercício contínuo, o lactato é preferido à glicose como combustível em músculos esqueléticos de fibras oxidativas, no coração e no sistema nervoso central. Esse fenômeno também se observa no estado pós-prandial e em cenários patológicos como lesão traumática encefálica, sugerindo papel neuroprotetor. Tais achados reforçam que o lactato constitui fonte central na sustentação da demanda energética durante estresse metabólico.
Complexo Mitocondrial de Oxidação do Lactato (mLOC) e controvérsias bioquímicas
A literatura converge na demonstração de capacidade mitocondrial de oxidar lactato, embora persistam hipóteses divergentes sobre o local exato da conversão lactato em piruvato. A proposta do mLOC admite a presença coordenada de LDH mitocondrial e transportadores MCT na membrana interna, possibilitando a entrada direta do lactato e posterior oxidação. Alternativamente, argumenta-se que a conversão ocorra antes da entrada no estroma mitocondrial, mediada por sistemas de transporte de equivalentes redutores (malato-aspartato e glicerol-3-fosfato). A despeito da controvérsia, todas as abordagens reforçam que o lactato é combustível crítico para a fosforilação oxidativa.
Lactato como sinalizador metabólico e regulador adaptativo
Além de integrar o metabolismo energético, o lactato modula particionamento de substratos: inibe lipólise no tecido adiposo (via HCAR1), limita a oxidação de ácidos graxos na musculatura ao promover aumento de malonil-CoA e ativa vias de regulação transcricional como PGC-1α, PPAR-γ e SIRT. Nova área emergente demonstra o papel da lactilação de histonas como mecanismo epigenético que ajusta a expressão gênica à disponibilidade energética.

Bartoloni B, Mannelli M, Gamberi T, Fiaschi T. The Multiple Roles of Lactate in the Skeletal Muscle. Cells. 2024; 13(14):1177.
Implicações para fisiologia do exercício: fim do conceito de “limiar anaeróbio”
A elevação da lactatemia durante o exercício não reflete hipóxia muscular, mas maior desacoplamento temporário entre produção e remoção de lactato devido ao aumento do fluxo glicolítico. Assim, o chamado “limiar anaeróbio” carece de validade conceitual e metodológica. O indicador mais correto é o Maximal Lactate Steady State (MLSS), que representa a máxima intensidade de exercício em que produção e depuração se equilibram. Nesse contexto, a lactatemia elevada constitui marcador de strain metabólico e não de falência oxidativa.
Perspectivas clínicas e translacionais
O conhecimento dos “shuttles” de lactato repercute no manejo de condições como trauma, choque séptico, pancreatite, insuficiência cardíaca e recuperação neurológica. Intervenções com lactato podem modular inflamação, sustentar a glicemia e otimizar aporte energético a tecidos críticos. No esporte, seu entendimento permite prescrições mais precisas para otimizar desempenho e adaptação mitocondrial.
Conclusão
As evidências atuais posicionam o lactato como elemento central da fisiologia humana: substrato preferencial, regulador do metabolismo sistêmico e vetor de comunicação intercelular. A ideia de lactato como “resíduo anaeróbio” representa uma interpretação ultrapassada e incompatível com o corpo robusto de dados experimentais contemporâneos.
Referências:
Brooks GA, Arevalo JA, Osmond AD, Leija RG, Curl CC, Tovar AP. Lactate in contemporary biology: a phoenix risen. J Physiol. 2022 Mar;600(5):1229-1251.
Brooks GA. The Science and Translation of Lactate Shuttle Theory. Cell Metab. 2018 Apr 3;27(4):757-785.
Brooks GA. Lactate as a fulcrum of metabolism. Redox Biol. 2020 Aug;35:101454.
Brooks GA. Lactate: link between glycolytic and oxidative metabolism. Sports Med. 2007;37(4-5):341-3.