Vital e ao mesmo tempo letal, o oxigênio foi o gás que inaugurou a complexidade dos organismos em nosso planeta. Há cerca de 2,4 bilhões de anos, durante o Grande Evento de Oxigenação, bactérias primitivas aprenderam a capturar a luz do Sol e a extrair o hidrogênio da água, libertando o oxigênio como resíduo — um acaso cósmico que mudaria para sempre a face da Terra. Essa invenção das cianobactérias foi uma bênção e uma maldição: o ar se tornou tóxico para as formas de vida anaeróbicas que então dominavam o planeta, e uma extinção em massa varreu quase tudo o que respirava de outro modo.
Da catástrofe nasceu a possibilidade. Algumas dessas antigas bactérias, incapazes de resistir ao novo veneno atmosférico, esconderam-se nas sombras dos oceanos profundos; outras, mutantes ou mais ousadas, aprenderam a usar o próprio oxigênio como força oxidante, transformando o inimigo em fonte de energia. Dentre elas, algumas acabaram por se fundir com outras células, em um pacto simbiótico que fundaria a vida complexa. Como ensinou Lynn Margulis, “a evolução não é apenas competição, mas comunhão”; e é dessa comunhão que emergem as mitocôndrias, descendentes dessas bactérias aeróbicas ancestrais, hoje pulsando silenciosamente dentro de cada célula do nosso corpo.
Nós somos, portanto, herdeiros dessa antiga reconciliação entre o veneno e a vida. Cada respiração é uma lembrança de que o oxigênio, que nos anima, também nos destrói lentamente — pois as mesmas reações químicas que liberam energia geram radicais livres, agentes da degeneração celular. Schrödinger, em What is Life?, escreveu que viver é “manter-se afastado do equilíbrio termodinâmico” — resistir ao caos, por um tempo, à custa de consumir energia e degradar o que nos cerca. Somos sistemas que se sustentam enquanto queimam, como velas conscientes de sua própria chama.
No intricado processo de geração de energia aeróbica, a fosforilação oxidativa revela a engenhosidade e a limitação da vida: apenas cerca de 30% da energia liberada é convertida em trabalho útil; o restante se dissipa como calor. Essa ineficiência é o preço da estabilidade térmica que nos permite existir. Em repouso, o calor mantém o corpo na temperatura ideal para o metabolismo; mas, durante o exercício intenso, o mesmo calor torna-se fardo, elevando a temperatura interna até os limites da exaustão.
Fomos geneticamente esculpidos para o endurance, para a persistência e a travessia longa, mas as leis da termodinâmica nos recordam de nossas fronteiras. Apesar da notável capacidade de produzir suor, nosso corpo luta para dissipar o calor quando grandes grupos musculares trabalham ciclicamente. O beija-flor, em contraste, vive outro dilema: com uma razão mínima entre massa e superfície corporal, perde calor demais durante o voo e precisa manter o motor metabólico no máximo, queimando oxigênio para não esfriar e morrer. Seu voo é puro fogo biológico — mas a chama consome rápido. Poucos ultrapassam quatro anos de vida.
Nós, ao contrário, não precisamos arder continuamente. Podemos modular o metabolismo, descansar, adaptar-nos. Ainda assim, quando o empurramos ao máximo — seja por esforço físico, paixão, ou vontade de potência — sentimos a mesma contradição: o que nos fortalece também nos desgasta. Nietzsche diria que “aquilo que não me destrói me fortalece”, mas também que “viver é sofrer e sobreviver é encontrar sentido no sofrimento”. O oxigênio é o nosso Dionísio químico: embriaga-nos de energia, mas nos conduz lentamente ao declínio.
O beija-flor morre de tanto voar; nós morremos de tanto pensar, desejar, metabolizar. Ainda assim, não podemos escolher outra via. Como Camus observou, “devemos imaginar Sísifo feliz” — consciente de que a pedra sempre rolará de volta, mas ainda assim decidido a empurrá-la. A consciência, essa última e mais complexa criação das antigas bactérias aeróbicas, é o modo pelo qual o universo reflete sobre a própria entropia.
No fundo, somos sistemas termodinâmicos que lutam contra a tendência universal à desordem. Spinoza chamaria isso de conatus — a potência de perseverar no ser. E Heráclito já dizia, há 25 séculos, que “a guerra é o pai de todas as coisas”. O mesmo conflito químico que destruiu os primeiros organismos deu origem à consciência que agora escreve sobre eles.
O uso intenso do oxigênio acelera nossa deterioração, mas também nos transforma: adapta, fortalece, aprimora. O exercício, a paixão, o pensamento — todos queimam, todos desgastam, mas também elevam. A morte é certa, mas que ela nos encontre em grande forma: lúcidos, quentes, pulsantes.
Viver é resistir apesar da certeza do fracasso.
E nessa resistência, há beleza — porque o fracasso é apenas o nome que damos à entropia, e a vida, o intervalo luminoso em que o caos se curva à consciência.