TREINAMENTO DE ENDURANCE INTENSO: BENEFÍCIO, LIMITE E RISCO NO CONTEXTO CARDIOVASCULAR

por | jul 22, 2025

Embora a prática regular de exercícios físicos seja amplamente reconhecida como fundamental para a promoção da saúde e longevidade, estudos recentes têm levado a comunidade científica a reconsiderar a ligação entre exercícios de endurance em alta intensidade e a saúde cardiovascular de atletas altamente treinados. Nesse cenário, embora o exercício moderado seja um agente profilático e terapêutico amplamente reconhecido, há cada vez mais evidências de que a participação em esportes de resistência extremos pode criar uma relação em forma de “U” entre a quantidade de atividade física e a saúde cardiovascular. Nesses casos, tanto a inatividade quanto o excesso podem causar efeitos prejudiciais à função miocárdica.

Esse artigo discute os potenciais efeitos adversos do exercício de endurance intenso e prolongado sobre o coração de atletas previamente saudáveis, com especial atenção às alterações transitórias e crônicas, aos mecanismos subjacentes e às implicações para o planejamento do treinamento.

 

  1. Efeitos Agudos do Exercício Intenso sobre o Coração

Evidências acumuladas das últimas 2 décadas, sugerem que exercícios prolongados e vigorosos, como as provas de triathlon em distâncias extremas, impõem sobrecarga significativa ao sistema cardiovascular, especialmente às estruturas do lado direito do coração. A esse respeito, acredita-se que o aumento exacerbado da pré e da pós-carga, associado à sustentada elevação do débito cardíaco, é capaz de desencadear episódios de “fadiga ventricular” transitória, frequentemente identificada por redução da deformação miocárdica e da fração de ejeção ventricular, especialmente do ventrículo direito (VD).

Eletrocardiogramas obtidos logo após desafios de endurance extremos frequentemente revelam anormalidades reversíveis, incluindo elevação do ponto J no final do complexo QRS, inversão de ondas T em derivações anteriores e padrões que simulam bloqueio de ramo direito incompleto e coletivamente sugerem sobrecarga do VD. Também tem sido relatado que desafios de endurance que combinam alto volume e intensidade, concorrem para disfunção do endotélio vascular secundário à inflamação e estresse oxidativo.

Além disso, há relatos de disfunção atrial aguda, particularmente com redução das fases de enchimento e contração do átrio esquerdo, cujas alterações, apesar de reversíveis, levantam hipóteses sobre a possibilidade de remodelagem repetitiva e progressiva quando os estímulos se tornam crônicos. Curiosamente, tais efeitos parecem mais pronunciados após eventos de maior duração ou em condições ambientais adversas que combinem calor, alta umidade e subsequente desidratação.

Mesmo em atletas saudáveis, marcadores de lesão miocárdica como a troponina cardíaca (cTn) frequentemente se elevam acima do limite de detecção após esforços extremos e apesar de transitório e benigno, sua recorrência levanta questionamentos quanto ao possível papel cumulativo na indução de remodelamento miocárdico.

 

  1. Efeitos Crônicos e o Paradigma da Adaptação versus Maladaptação

Enquanto os efeitos agudos tendem a se resolver em poucos dias, o treinamento crônico e de alto volume é capaz de induzir alterações estruturais e elétricas persistentes. Alterações da condução elétrica, como bloqueios atrioventriculares de primeiro grau e do tipo Mobitz I, são frequentemente observadas em atletas veteranos e, em muitos casos, interpretadas como adaptações fisiológicas ao aumento do tônus vagal. Contudo, quando acompanhadas de pausas assintomáticas, bradicardia extrema ou até mesmo quando evoluem para bloqueio total, podem representar risco em ambientes desassistidos.

A fibrilação atrial, por sua vez, apresenta prevalência aumentada em atletas de endurance, particularmente homens de meia-idade com história de treinamento prolongado. Acredita-se que o aumento do tônus vagal basal, a dilatação atrial sustentada e a remodelação elétrica favoreçam a ocorrência de reentrada e instabilidade elétrica nos átrios. Por outro lado, a presença de fibrose e inflamação também contribuem para o fenômeno em atletas “Master”.

Outro achado de destaque refere-se ao prolongamento do intervalo QT corrigido (QTc) e alterações das ondas T, que em alguns atletas podem se sobrepor aos achados do subtipo genético da síndrome do QT longo. Embora estas manifestações sejam frequentemente benignas, levantam o debate sobre o conceito de “síndrome do QT longo induzida pelo esporte”, cuja base fisiopatológica ainda é incerta, mas pode envolver aumento da liberação intracelular de cálcio em resposta ao estiramento miocárdico induzido pelo exercício.

 

III. Cardiomiopatia Arritmogênica do Ventrículo Direito e Fibrose Miocárdica

Um tema de especial preocupação é o potencial papel do exercício intenso e crônico como fator precipitante ou acelerador da cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito (ARVC), mesmo na ausência de mutações genéticas detectáveis. A literatura aponta que atletas engajados em treinos extenuantes por longos períodos podem desenvolver padrão clínico e imagem compatíveis com ARVC, incluindo realce tardio do gadolínio em exames de ressonância magnética cardíaca, áreas de fibrose e episódios de taquiarritmias ventriculares malignas.

Modelos animais e dados observacionais sugerem que o exercício em alta intensidade e sem adequada recuperação pode induzir estiramento miocárdico excessivo, inflamação e substituição fibrosa do tecido muscular — especialmente no VD —, alterando sua geometria e promovendo substrato arritmogênico.

 

  1. Aneurismas, Calcificações e Morte Súbita: Outras Faces da Endurance Extrema

Embora a dilatação leve da aorta seja considerada uma adaptação fisiológica comum em atletas de endurance, casos de dilatação significativa (>40 mm em homens) são raros e ocorrem preferencialmente em esportes com alta carga isométrica, como o remo. Mais recentemente, foi também relatada maior prevalência de calcificações coronarianas em atletas veteranos de endurance, fenômeno inicialmente paradoxal, mas que pode estar relacionado à inflamação vascular crônica e ao estresse oxidativo repetido. Apesar disso, essas placas tendem a ser predominantemente calcificadas e estáveis, possivelmente com risco reduzido de ruptura.

Por fim, relatos de miocardite associada ao exercício em atletas previamente saudáveis têm motivado atenção. Embora incomuns, a ocorrência de miocardite subclínica pode representar fator precipitante de morte súbita, particularmente quando o retorno ao treinamento ocorre precocemente, antes da resolução da inflamação miocárdica.

 

  1. Considerações Finais e Implicações para o Planejamento do Treinamento

Os achados supracitados não devem ser utilizados como argumento contra a prática de esportes de endurance, mas sim como alerta para a necessidade de individualização do treinamento, monitoramento regular e educação do atleta e de sua equipe de apoio. A complexidade das adaptações cardiovasculares ao exercício intenso exige mais do que o tradicional “mais é melhor” e condiciona a estruturação do planejamento a profissionais conhecedores da ciência do esporte.

Assim, treinadores e profissionais da saúde e do rendimento devem estar atentos à alternância cíclica das cargas com ênfase na recuperação e supercompensação, assim como com a presença de sintomas como palpitações, síncopes e quedas inexplicadas de rendimento, além de incorporarem periodicamente avaliações eletrocardiográficas, ecocardiográficas e laboratoriais em atletas veteranos ou submetidos a cargas crônicas elevadas.

A ciência do esporte não deve ser pautada apenas por marcas e recordes, mas também pela preservação da saúde dos que se dedicam a descobrir seus próprios limites.

 

Referências:

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