O QUE É SAÚDE? Saúde como potência de vida: entre a biomedicina e a liberdade de existir

por | maio 21, 2025

Durante muito tempo, a saúde foi compreendida como a simples ausência de doenças. Esse paradigma reducionista, fortemente enraizado no modelo biomédico tradicional, contribuiu para uma concepção limitada do que significa viver plenamente. Entretanto, nas últimas décadas, pensadores como Georges Canguilhem, Michel Foucault, Friedrich Nietzsche e, no contexto brasileiro, Naomar de Almeida Filho, vêm desafiando essa visão, propondo interpretações mais amplas, potentes e libertadoras da saúde.

Canguilhem, médico e filósofo, foi um dos primeiros a afirmar que a saúde não deve ser definida pela normalidade estatística, mas pela capacidade de um organismo de criar novas normas diante de situações adversas. Em outras palavras, ser saudável não é manter-se dentro de uma média padronizada, mas possuir a plasticidade e a vitalidade necessárias para se adaptar, transformar e viver com intensidade. A saúde, para Canguilhem, é uma manifestação da potência criadora da vida.

Foucault, por sua vez, nos convida a enxergar a saúde como uma construção social, atravessada por relações de poder e saber. O conceito de “biopolítica” introduzido por ele revela como os discursos médicos e sanitários podem ser utilizados para controlar corpos, gerir populações e regular a vida desde seus aspectos mais íntimos. Nesse sentido, falar de saúde é também falar de liberdade: liberdade de escolher, de experimentar, de viver fora dos padrões normativos impostos por uma sociedade cada vez mais medicalizada.

Nietzsche, cuja filosofia vitalista influencia toda essa discussão, vê a vida como um fluxo de forças e intensidades em constante devir. A saúde, nesse contexto, é potência — não no sentido de vigor físico apenas, mas como afirmação da existência, da criatividade, da vontade de viver apesar da dor, da falha e da finitude. Aquele que é saudável é aquele que, mesmo diante das dificuldades, é capaz de dizer “sim” à vida.

No campo da saúde pública brasileira, Naomar de Almeida Filho amplia esse debate ao propor uma nova epistemologia da saúde. Ele afirma que o sujeito saudável é aquele que exerce autonomia, que participa ativamente das decisões que afetam sua vida, que cria vínculos sociais e afetivos e que é capaz de transformar seu território. Sua visão ecoa a proposta da Fiocruz, que entende saúde como “a produção da vida em sua integralidade”, com ênfase nos determinantes sociais, ambientais, econômicos e culturais.

Nesse horizonte, saúde deixa de ser um estado fixo a ser alcançado e passa a ser um processo dinâmico, coletivo e profundamente político. Alimentação adequada, moradia digna, acesso à cultura, ao lazer, ao trabalho decente e à educação são condições fundamentais para uma existência saudável. Assim, promover saúde é promover justiça social, autonomia e dignidade.

Portanto, pensar a saúde como potência de vida significa romper com o paradigma da doença e abrir espaço para uma visão mais complexa, integradora e emancipadora da existência. É reconhecer que somos seres de desejo, de afetos, de sonhos — e que nossa saúde depende, sobretudo, da liberdade de expressar quem somos, do cuidado com os outros e do compromisso com um mundo mais justo e vivo.

Fonte: Teixeira, Rafael Henrique. Canguilhem, Foucault e a medicina. discurso, v. 49, n. 2 (2019), pp. 187-210