Há, no coração da ciência, um pacto silencioso: o de que cada descoberta possa ser tocada novamente pelas mãos de outro. Que os caminhos traçados nos laboratórios sejam percorríveis, mesmo quando os pés são outros, os olhos outros, a intenção outra. É esse pacto que confere à ciência seu brilho austero e sua autoridade quase sagrada — a promessa de que a verdade, uma vez revelada, não se dissolve ao toque de um novo experimentador. E, no entanto, essa promessa começa a rachar.
Os corredores da ciência contemporânea, especialmente nas revistas de maior prestígio, estão agora povoados por um espectro incômodo: o da irreeprodutibilidade. Descobertas celebradas, manchetes eufóricas, fórmulas reverenciadas — e, ao tentar refazê-las, o vazio. Como um castelo erguido em névoa. A Nature, a Science, o New England Journal of Medicine: tronos altos, mas com fundações frágeis, muitas vezes assentadas sobre dados que se recusam a reaparecer sob novo olhar.
Mais de 70% dos pesquisadores em biologia, segundo estudo publicado pela própria Nature, não conseguiram replicar os achados de seus pares. E, mais grave ainda, 60% não conseguiram sequer reproduzir os próprios resultados. O que era para ser ciência tornou-se performance.
Por que isso acontece? As razões são tantas quanto os frascos em um laboratório mal arrumado. Algumas são banais: métodos mal descritos, dados ocultos, reagentes que não são compartilhados. Outras são mais sutis e perigosas, como a contaminação invisível das células, os erros acumulados no design experimental, ou ainda a manipulação inconsciente dos dados para caberem numa hipótese previamente querida.
Mas há também razões mais profundas, enraizadas no próprio solo em que a ciência moderna cresceu. Vivemos numa cultura que premia o novo e silencia o fracasso. O pesquisador que descobre algo revolucionário é celebrado; aquele que mostra que a revolução anterior não se sustenta, ignorado. Publicar resultados negativos é quase um ato de rebeldia, e a pressão para obter dados “bonitos”, “limpos”, “impactantes” — ainda que ao custo da verdade — pode ser esmagadora.
O resultado é um edifício majestoso que, de perto, revela fissuras. São bilhões de dólares gastos em estudos que não levam a lugar nenhum. Medicamentos desenvolvidos com base em evidências ilusórias. Décadas de esforço desperdiçadas, porque não se cuidou da base, do rigor, da repetibilidade.
Há, porém, um movimento que reage. Iniciativas que propõem o compartilhamento radical de dados, a certificação rigorosa de materiais biológicos, o treinamento estatístico de jovens cientistas, a pré-registro de estudos antes de sua realização, e até a publicação honesta de resultados “decepcionantes”. Uma ciência que aceite o erro como parte do caminho — mas que se comprometa com a transparência sobre ele.
Se a ciência é, como se diz, o melhor método que temos para conhecer o mundo, ela precisa reaprender a olhar para si mesma com humildade. Porque não basta descobrir: é preciso permitir que o outro descubra também. E nisso, talvez, esteja o verdadeiro milagre da ciência — não no instante da revelação, mas na possibilidade da repetição.
Fonte: Reproducibility and transparency: what’s going on and how can we help. Nat Commun 16, 1082 (2025).